Enquanto a violência toma conta da população, defensoria pública do Estado se preocupa com a violência policial

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13/09/2016 - PORTO ALEGRE, RS - Audiência pública da defensoria no Plenarinho sobre violência policial. Foto: Guilherme Santos/Sul21
13/09/2016 – PORTO ALEGRE, RS – Audiência pública da defensoria no Plenarinho sobre violência policial. Foto: Guilherme Santos/Sul21

SUL21: Em apenas seis meses, denúncias de violência policial no RS já igualam casos de 2015

Marco Weissheimer

O número de denúncias de violência policial, em Porto Alegre e na Região Metropolitana, enviadas à Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Sul nos primeiros seis meses de 2016 já igualam todos os casos registrados em 2015. No ano passado, 81 casos chegaram ao conhecimento da Defensoria, o mesmo número registrado de janeiro a junho deste ano. O dado foi divulgado nesta terça-feira (13), durante a audiência pública que apresentou um diagnóstico da demanda de violência policial do Centro de Referência em Direitos Humanos (CRDH), da Defensoria Pública, no período entre 2013 e 2016. O estudo foi realizado pelo professor Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo, coordenador do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da PUCRS, que participou da audiência realizada no Plenarinho da Assembleia Legislativa, juntamente com sua equipe de pesquisadores.

Além de igualar em apenas seis meses os registros de todo o ano passado, os números de 2016 devem superar largamente os de 2014 (67 casos) e os de 2013 (73 casos). Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo classificou esses números como muito preocupantes, alertando que eles devem ser bem maiores dada a subnotificação dos casos. “Esse dado acendeu o sinal de alerta. Há muito mais casos de violência policial do que os que chegam à Defensoria Pública. Nossa pesquisa tem muitas lacunas em função da carência de dados, mas ela é suficiente para apontar algumas tendências preocupantes”. Na avaliação do pesquisador, o aumento expressivo do número de casos em 2016 reflete, em parte, a consolidação do papel da Defensoria como órgão com visibilidade na sociedade para receber denúncias sobre a ocorrência de violência policial. Mas também pode refletir, acrescentou um aumento efetivo do número de casos, em um momento de grave turbulência política no país e de uma agudização da crise da Segurança Pública no Rio Grande do Sul.

“Estamos vivendo um momento muito preocupante no Brasil e, especialmente, aqui no Rio Grande do Sul, onde vemos inclusive representantes de algumas instituições culpando os Direitos Humanos pelo aumento da violência. Isso é muito grave. A garantia de direitos fundamentais no país vem sendo atropelada. Quem fala em violência policial aqui no Estado é acusado de falar em favor de bandidos. Esse é um debate que vem sendo interditado e isso é extremamente grave. Recentemente, um comandante da Brigada Militar atribuiu aos defensores de direitos humanos a responsabilidade pela morte de um policial civil. Não há democracia sem polícia, mas precisa ser uma polícia controlada pela sociedade e que age segundo regras”, assinalou o professor da PUCRS, que também chamou a atenção para o aumento de manifestações sociais e políticas com ações da polícia muitas vezes abusivas e fora de padrões aceitáveis numa democracia.

Mariana Cappellari: "O Núcleo de Defesa em Direitos Humanos, da Defensoria, tem hoje mais de 400 expedientes em tramitação e mais da metade deles envolve denúncias de violência policial". (Foto: Guilherme Santos/Sul21)

Mariana Cappellari: “O Núcleo de Defesa em Direitos Humanos, da Defensoria, tem hoje mais de 400 expedientes em tramitação e mais da metade deles envolve denúncias de violência policial”. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)

Mariana Cappellari, Defensora Pública dirigente do Núcleo de Defesa em Direitos Humanos e coordenadora do CRDH, que organizou a audiência pública, destacou que o núcleo tem hoje mais de 400 expedientes em tramitação e mais da metade deles envolve denúncias de violência policial. “O papel do Centro de Referência vai além do recebimento de denúncias, fazendo também um trabalho de acolhimento que envolve profissionais de várias áreas. Atuamos em três níveis de responsabilização: administrativa, criminal e civil, com várias ações indenizatórias em curso contra o Estado. A Defensoria vem preenchendo uma lacuna que existe nesta área, ocupando um espaço mais amplo que vai além da mera defesa de pessoas sem condições econômicas para contratar um advogado”, destacou.

O perfil das vítimas de violência policial

A Defensoria Pública quer aperfeiçoar o trabalho de sistematização de dados referentes ao tema da ação policial. O subdefensor público geral, Tiago Rodrigo dos Santos, informou que, para tanto, a instituição está elaborando um questionário que será aplicado nas audiências de custódia para definir o perfil das pessoas que vem sendo presas e também o perfil da atuação policial. O estudo realizado pelos pesquisadores da PUC procurou traçar um perfil das vítimas, cujas denúncias chegaram ao conhecimento da Defensoria Pública. A maioria é composta por homens (85,30%). Os casos envolvendo mulheres chegaram a 13,98%. Considerando a ocupação, 43,01% dos denunciantes trabalham, 9,68% não trabalham ou são estudantes e em 47,31% dos casos a ocupação não foi informado, fato que vai se repetir em outras situações.

Do ponto de vista racial, 54,84% são brancos, 13,98% são negros, 10,75% pardos e 20,43% dos casos não tiveram a raça informada.  Os pesquisadores lembraram que, segundo o último censo do Instituto Brasileiro de Geografia Estatística (IBGE), há cerca de 20% de negros e pardos no Rio Grande do Sul, o que faz com que o índice apontado no levantamento seja relativamente elevado.

O perfil dos acusados

A pesquisa também investigou alguns elementos relacionados ao perfil dos acusados de cometer violência policial. A maioria é composta por homens (70,61%). Os casos envolvendo mulheres acusadas desse tipo de violência chegaram a apenas 2,51%, enquanto que, em outros 26,88% dos casos, o gênero não foi informado. A Brigada Militar lidera o ranking das denúncias de violência policial, com 89,89%, sendo seguida pela Polícia Civil, com 6,5%, e a Guarda Municipal, com 2,17%. Dentro dos casos envolvendo a Brigada, 23,30% envolveram soldados, 3,23% sargentos e 71,68 não tiveram essa informação registrada. Na avaliação de Rodrigo de Azevedo, o fato de a Brigada Militar liderar esse ranking tem a ver com o fato de ela ser responsável pelo policiamento ostensivo, mas também está relacionado com a estrutura militarizada da instituição.

Rodrigo de Azevedo: "Quem fala em violência policial aqui no Estado é acusado de falar em favor de bandidos. Esse debate vem sendo interditado e isso é muito grave". (Foto: Guilherme Santos/Sul21)

Rodrigo de Azevedo: “Quem fala em violência policial aqui no Estado é acusado de falar em favor de bandidos. Esse debate vem sendo interditado e isso é muito grave”. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)

As agressões físicas lideram o ranking do tipo de violência denunciada, com 78,14%. Depois, seguem-se o abuso de autoridade (10,39%), a tortura (6,45%), morte (1,79%) e abusos sexuais (0,36%). Os pesquisadores assinalaram que há uma zona cinzenta entre os casos de agressão física e tortura, mas destacaram que a maioria das denúncias de prática de tortura envolvem delegados de polícia e carregam uma dificuldade de apuração muito grande, pois, neste caso, os mecanismos de controle são menos eficientes. Os casos de agressões físicas envolvem majoritariamente soldados da Brigada, enquanto os de abuso de autoridade são atribuídos, em sua maioria, a sargentos da corporação.

O estudo aponta ainda que o Ministério Público, que tem uma promotoria responsável pelo controle da atividade policial, tem se mostrado ausente desse debate e uma grande dificuldade institucional para executar esse trabalho, que vem sendo assumido, na prática, pela Defensoria Pública. Ivana Battaglin, promotora de Justiça de Defesa dos Direitos Humanos há um ano em Porto Alegre, relatou que tem recebido muitas denúncias de juízes, a partir das audiências de custódia, relatando algum tipo de violência policial. A promotora anunciou que está preparando um inquérito civil em relação ao que está sendo relatado nas audiências de custódia e outro inquérito para investigar a ação da Brigada Militar contra movimentos sociais. “Esse é um trabalho difícil, não queremos criar um clima de enfrentamento com a Brigada, mas sim de construção”, assinalou. Battaglin afirmou ainda que o Ministério Público não tem hoje a estrutura necessária para investigar as denúncias de violência policial.

Ponta do iceberg

Pesquisador na área de segurança pública, Marcos Rolim afirmou que, provavelmente, os números apresentados na pesquisa sejam a ponta de um iceberg muito maior. “No Brasil não há controle externo sobre a atividade policial. São órgãos que não prestam contas para ninguém, muito menos para a população. Se alguém para na rua para observar alguma ação policial, já pode se envolver em problemas. Na verdade, a violência policial é aceita socialmente contra determinado tipo de pessoas. Além disso, os policiais também são vítimas de violência dentro das instituições. Nós realizamos uma pesquisa que mostrou como policiais são vítimas de práticas de tortura no seu processo de formação”.

Debate realizado na Assembleia Legislativa reuniu autoridades da área da segurança, da Justiça, pesquisadores e representantes de movimentos sociais e da sociedade civil. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)

Debate realizado na Assembleia Legislativa reuniu autoridades da área da Segurança Pública, da Justiça, pesquisadores e representantes de movimentos sociais e da sociedade civil. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)

O secretário municipal de Segurança Pública de Canoas, Alberto Kopittke, defendeu que uma das causas da violência policial é a falta de uma política de segurança pública proativa, o que acaba colocando toda a responsabilidade do problema da criminalidade sobre as costas dos policiais que são pressionados também por um discurso que autoriza a violência. Kopittke apontou ainda como um problema a ser superado a falta de transparência por parte do Estado nesta área. “O que é exatamente o uso da força autorizado? Não há nenhum protocolo sobre isso acessível ao público. Além disso, apesar de termos uma lei que garante o acesso à informação, não temos, na prática, garantido esse acesso”, afirmou.

Rafael Monteiro Costa, major da Brigada Militar, reconheceu a necessidade do controle externo sobre a atividade policial, mas considerou os números apontados na pesquisa ínfimos perto do número de ocorrências realizadas anualmente pela polícia. “A verdade é que a nossa sociedade é muito violenta, basta ver os números de homicídios dolosos, homicídios de trânsito e de casos de violência contra as mulheres com que lidamos todos os anos. Temos cerca de 5.000 policiais atuando em Porto Alegre e na Região Metropolitana que atendem milhares de ocorrências e flagrantes. Os casos de violência policial são ínfimos perto desse universo. Costumo repetir nos cursos de formação de nossos policiais: Quando o cara se entregou e está algemado, ele vira um príncipe. Ninguém toca nele. Eu acho que a nossa polícia é menos transgressora do que a maioria de outros estados. Nós sempre fomos o patinho feio de um sistema que tem muitos problemas. Enquanto nossa realidade for essa, nunca teremos uma polícia suíça no Brasil”.

Ouvidora da Defensoria Pública do Rio Grande do Sul, Denise Dora, chamou atenção para as denúncias de casos de tortura envolvendo delegados de Polícia, que são formados em Direito. Ela propôs um debate sobre essa questão envolvendo a universidade. “O que as nossas faculdades de Direito estão fazendo a respeito? Estão tratando desse tema?”, questionou.