OSCAR BESSI: Carta a jovens policiais

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888Por Oscar Bessi

Querido leitor desta, cuja vida ainda tens por viver. Quem te escreve traz uma vida a contar. O bom de nossas caminhadas humanas é que, em determinado momento, elas nos fazem carregar duas malas pesadas. Uma de acertos e vitórias, nem todas conscientes. Outra de erros e equívocos que, precisamos admitir, alguns talvez tenham sido até necessários, outros simplesmente abalizados por qualquer julgamento de instante. Ser humano é assim. Ser imperfeito.

Há um momento, entretanto, em que paramos à beira de nossa própria estrada, querendo ou não, e abrimos estas malas. Contemplamos o que dela salta: nossos passos, nossos pesos. E, quase em defesa de nós mesmos, pensamos no que pode ser deixado ali pelo caminho, antes de prosseguir. Aí descobrimos que nada é descartável. Nem o que não gostamos. O que foi feito está feito, está vivido e sentido, só resta transformar em lições. A grande sacada de nossas vidas: a possibilidade de aprender. E então ensinar.

Será sempre a primeira lição: ter cuidado. És único, sem superpoderes. Mas ninguém te tolerará imperfeito, ainda que continue humano. Terás poder sem ter poder algum, pois o que fizer ou cercear não será em teu nome, mas em nome de um povo. Terás que pensar por ele. Decidir e optar por ele. Matar ou morrer por ele. Quase sempre em átimos, cacos de instante. E por teus atos serás sempre e até severamente questionado por qualquer um que se sinta prejudicado ou ofendido, ainda que tenhas agido pleno de razão e apuro. Nem sempre a justiça dos homens é justa. E a divina te parecerá desatenta. No vão destas, um desejo quase incontrolável de justiça pelas próprias mãos arderá na alma inquieta. Eis o pior remédio.

Não te habitues à espera do elogio. Os beberrões amaldiçoarão tuas providências, mas culparão tua ausência pelas mortes na estrada. Os manifestantes jogarão pedras em ti, não nos governos que dizem combater. O traficante será denunciado pela mesma sociedade que aprecia suas drogas e as consome cada vez mais. Os que considerarão barbárie o ato do assaltante, mudarão de alvo caso a tua indignação deixe escapar um gesto a mais de raiva ao prendê-lo. E os que gritam contra a impunidade, ah, estes serão os mesmos a negociar contigo, entre sussurros, as multas de seu carro.

Só as crianças e as vítimas te olharão com algum sonho.

Outros, eleger-te-ão a imagem da injustiça. E a foto de quem bem sabes que a semeia, todos os dias, ao teu redor e ao redor de todos, feito uma serpente em seu bote, essa não te acompanhará. Levarás contigo um amor alvejado de ódios. Serás continuamente heroico, invariavelmente anônimo. Quase sempre invisível. Diariamente alvo.

E alguém te oferecerá vantagens. Lucro em tua própria ausência, ou glórias efêmeras, medalhas ou posições sob exemplos distorcidos. E te oferecerá valores que, talvez, quem deveria te dar já esqueceu.

Aí, verás se tua dignidade tem preço. Pois também há um preço no sustentar de tua família.

O que sai mais caro?

No compromisso que juraste, saberás quem paga a conta e quais são os caminhos de luta. Terás a chance da escolha. Pense no corpo que adoece e se entrega, ou resiste à chaga. Pois há alguém que leva teu amor, perto ou longe de ti, e este alguém está sob os cuidados de um colega teu. Que vive os mesmos dilemas. E que também fez as suas escolhas.

Ser policial é sacerdócio. Luta constante, quase injusta. Vocação. E jamais esqueça que há muitos sonhos de paz em jogo. Não ignores o teu coração logo agora.

CORREIO DO POVO