ZERO HORA: Facções criminosas brasileiras adotam barbáries usuais de cartéis mexicanos

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Área isolada e militares atuando em cenas de crimes são comuns no país latino
Foto: Humberto Trezzi / Agencia RBS

Empoderadas, facções criminosas brasileiras adotam mutilações, chacinas e outras barbáries usuais entre os cartéis de drogas do México

Por: Humberto Trezzi

Cabeças cortadas e jogadas em praça pública. Massacres em presídios. Milícias contra o tráfico. Chacinas em bares e boates. Matanças sem fim nas ruas. O Brasil começa a experimentar agora barbáries que outro grande país latino-americano, o México, vivencia há pelo menos 10 anos.

Tudo pautado por uma espiral de descontrole na delicada área da segurança pública. As facções do crime não se contentam agora com o varejo. Disputam o mercado brasileiro como um todo.

Os mexicanos conhecem essas desgraças desde meados da década passada. Zero Hora esteve em outubro de 2009 em Ciudad Juárez (cidade mexicana na fronteira com os Estados Unidos), na época a cidade mais violenta do Ocidente.

Na frente da prefeitura local, a equipe de ZH viu cena estarrecedora: três cabeças cortadas e colocadas sobre bancos de plástico. Atrás delas, cartazes com um alerta:

— Isso é o que vai acontecer com todos que nos buscam, os seguidores de Chapo. Assinado: La Línea (apelido do Cartel de Juárez).

Era briga de cartéis, algo corriqueiro na fronteira de um dos países mais violentos das Américas. Juárez, com o mesmo tamanho de Porto Alegre (cerca de 1,5 milhão de habitantes), tinha taxa anual de 130 assassinatos por 100 mil habitantes — sete vezes mais do que a capital gaúcha apresentava, à época, uma vez que, atualmente, a metrópole vive epidemia de homicídios.

Hoje as cabeças cortadas atormentam o cotidiano dos porto-alegrenses. Chacinas se sucedem num ritmo que preocupa especialistas como Francisco Amorim, mestre e doutorando em Sociologia, integrante do Grupo de Pesquisa Violência e Cidadania da UFRGS.

Em estudo sobre violência oriunda do narcotráfico, Amorim estuda 30 cidades de 17 países. Esteve na Colômbia e acaba de voltar do México.

— Assim como no México dos anos 2000, vivemos aqui um salto nas taxas de crimes violentos por conta de disputas, agora em nível nacional, entre grandes organizações criminosas. Estes grupos, tanto lá como aqui, agem por redes de acordo, pactos que podem durar anos ou semanas. Aí disputam violentamente rotas e pontos de venda, não apenas de entorpecentes, mas de produtos contrabandeados ou roubados. Por isso, a briga é maior nas fronteiras e em portos, como Natal e Rio de Janeiro. Ao se nacionalizarem, PCC e CV querem a hegemonia que trará, por exemplo, o controle do tráfico de cocaína para o sul da América do Sul, Brasil e ainda algumas importantes rotas aéreas e marítimas para a Europa — analisa.

O pesquisador crê que a superlotação prisional tende a acelerar a violência. De uma progressão aritmética, os barbarismos saltaram para algo quase geométrico, nos últimos anos.A grande diferença é que a criminalidade brasileira — incluindo a gaúcha — ainda não alcançou a penetração social da registrada no México. Ainda.

A guerra dos cartéis no país latino

No México, vários fatores agravam em muito o crime, sobretudo nas fronteiras. Entre eles, a corrupção, que atinge amplas camadas da polícia e da política (em níveis estratosféricos), a epidemia de sequestros (aqui raros) e o tráfico de pessoas (escravizadas na tentativa de migrar para os EUA).

Outra novidade mexicana é o recrutamento forçado de jovens para o crime. São levados de suas casas para trabalhar em cartéis, sem opção de dizer não.

Afora isso, os mexicanos continuam matando mais que no Brasil, só que trocaram de palco. Ciudad Juárez, que vivencia uma paz armada entre os cartéis, baixou de 130 para 34 homicídios por 100 mil habitantes/ano.

A guerra agora acontece em locais turísticos, como Acapulco (banhada pelo Pacífico, cenário de filmes clássicos de Elvis Presley), cuja taxa de homicídios foi de 104 por 100 mil habitantes, no ano passado.

Ou seja, maior que em qualquer cidade brasileira. Porto Alegre, com tamanho similar a esse balneário mexicano, está longe disso: apesar da mortandade recorde, tem taxa de 41 mortes por 100 mil habitantes.

Como evitar que padrões mexicanos se consolidem no Brasil?  Uma maneira é saber como o México chegou à barbárie. Cada grande Estado mexicano tem seu cartel, ensina o jornalista investigativo Mártin Duran Romero, que atua em Sinaloa.

Os métodos é que os diferenciam. Enquanto na região do Atlântico as facções Los Zetas (fundada por ex-forças especiais do Exército) e do Golfo primam por práticas violentíssimas (como extorsão e sequestro de comerciantes, assassinato massivo de migrantes que não pagam suborno, explosões de lojas), na região do Pacífico (cartéis de Sinaloa e Tijuana), há maior preocupação em boas relações com o empresariado, informa o especialista. Mas todos matam.

A guerra de cartéis ocorre em ciclos, desde o início da década de 80. A pior matança ocorreu a partir de 2008, quando as facções de Sinaloa e Tijuana (ambos na costa do Pacífico) começaram disputar os despojos do Cartel de Juárez.

Tudo no norte mexicano, porta de entrada para o rico mercado das drogas norte-americano. O governo federal, com dinheiro americano, enviou tropas militares para intervenção nessas regiões.

— Um erro, porque não é matando ou encarcerando líderes que se acaba com o problema. Há uma dinâmica de oferta e procura, na qual os grandes consumidores de droga são os norte-americanos — critica o professor mexicano Juan Antonio Fernandez, doutor em Sociologia pela Universidad de Vera Cruz e pesquisador de criminalidade, em entrevista a Zero Hora.

Vieram batalhas sem fim. Matou-se em território mexicano, desde 2006, quase o mesmo que em toda a guerra do Iraque.

— O governo federal mexicano subestimou o poder inusitado dos cartéis na economia, na política e na cultura. Foi um erro crer que era apenas problema de segurança. É muito mais complexo, envolve políticas públicas de saúde e raízes culturais — critica.

Cartel de Chapo é focado em lavagem de dinheiro e corrupção

Adrian López, autor do livro Un País Sin Paz, sobre cartéis da droga mexicanos, diz que o cartel de Sinaloa (que tinha Chapo Guzmán, agora preso, como líder) atua aos moldes da máfia tradicional, com menos violência e mais lavagem de dinheiro e corrupção.

Algo similar ao que o Primeiro Comando da Capital (PCC, paulista) tenta agora imprimir ao submundo brasileiro – um caminho pavimentado por violência e crueldade.López vê similaridades entre Brasil e México: países de economias emergentes, com grandes populações e sistemas democráticos em construção.

¿Mas me parece que a autonomia do Poder Judiciário é maior no Brasil e permite maior aplicação da Justiça, algo que não ocorre no México e que seria fundamental¿, define.

Evitar que o cataclismo mexicano se repita no Brasil é difícil. Uma alternativa talvez seja conter as organizações de tráfico antes da sua propagação no aparato estatal-eleitoral-empresarial, algo que o México não conseguiu, ponderam os experts consultados por ZH.

A fuga e a prisão

Conhecido como ¿El Chapo¿, em 2015, escapou da prisão de segurança máxima de Altiplano, a 90 quilômetros da Cidade do México, por meio de um túnel subterrâneo de 1,5 quilômetros de extensão. Em janeiro do ano passado, foi novamente recapturado. Na última quinta-feira, foi extraditado para os EUA.

No México e aqui

Como mexicanos e brasileiros se assemelham na criminalidade

O tamanho dos cartéis 

No México, os nove grandes cartéis fazem guerra uns contra os outros, inclusive atravessando o país (cartéis do Norte eliminando rivais no Sul, etc.).

São pelo menos nove organizações com capacidade internacional de ação.

No Brasil, as brigas de facções costumam ser regionais. Existem poucos cartéis com penetração nacional e ainda menos, internacional.

A guerra atual começou na fronteira Brasil-Paraguai, onde o PCC (facção criminosa paulista) mandou executar patrões do tráfico ligados ao Comando Vermelho (carioca).

Desde junho, mais de 40 mortes de ligados aos dois bandos foram registradas ali. O delegado Mikail Farias, da delegacia de Polícia Civil de Amambai, no Mato Grosso do Sul, a 40 quilômetros da fronteira paraguaia, confirma que a guerra de facções, ali, é perigosa. E quase todos que morrem são iniciados no crime.

— Os tiros têm endereço certo, bala perdida é caso raro — define.

Compra ou eliminação de policiais e políticos

No México, oferecer ¿plata o plomo¿ (dinheiro ou chumbo, suborno ou morte) aos políticos e policiais é sistemático. É cotidiana a eliminação de policiais e políticos que trabalham para outros (ou são suspeitos de).

Governantes, policiais e até generais, convocados para combater os cartéis, foram subornados e acabaram presos.

A deputada Lucero Sánchez López, de Sinaloa, foi comprovadamente eleita e apoiada pelo narcotráfico.

No Brasil, o esquema de compra de políticos é ainda embrionário, mas começa a aparecer.

O Comando Vermelho, periodicamente, ordena assassinato aleatório de PMs em represália contra mortes de chefes do tráfico no Rio.

Com relação à corrupção, os três últimos pleitos estaduais e municipais no Rio tiveram representantes de máfias (sobretudo milicianos) eleitos.

Na Região Norte, a cooptação de autoridades também se manifesta. Interceptações telefônicas recentes da PF mostram o subsecretário de Justiça do Amazonas combinando com presidiários apoio em votos para o governador — em troca de favores nas prisões. Ele foi afastado do cargo.

No RS, pelo menos um vereador de São Leopoldo foi eleito com apoio do tráfico, segundo denunciou o secretário estadual da Fazenda, Giovani Feltes.

Paramilitarismo

No México, proliferam grupos paramilitares criados para defender comunidades contra os narcotraficantes. São as milícias de autodefesa. Atuam sobretudo em áreas rurais.

No Brasil, os milicianos também fazem parte da paisagem há pelo menos uma década. No Rio, chegaram a tomar comunidades inteiras, onde extorquem comerciantes e moradores para ¿protegê-los¿ contra o tráfico.

Pedagogia do terror 

 No México, jogar cabeças cortadas em frente a prédios governamentais e pendurar corpos em viadutos das principais vias são práticas que vigoram há pelo menos uma década. E também o assassinato de ativistas de direitos humanos.

No Brasil, cabeças cortadas tornaram-se rotina na guerra entre facções travada em presídios em regiões metropolitanas.

Intervenção federal

è comum ver militares do Exército em cenas de crimes e patrulhando ruas do México, o que não ocorre no BrasilFoto: Gregorio Samsa / AFP

No México, ocorre de forma permanente nos pontos-chave do conflito, com tropas policiais federais e militares no enfrentamento direto do crime e também intervenção nos Estados (na parte de repressão criminal).

Em contrapartida, há também assassinato cotidiano de agentes federais e de ativistas dos direitos humanos.

No Brasil, não há intervenção federal nos Estados, salvo presença eventual da Força Nacional. A presença do Exército nas ruas é exceção. Não há assassinato sistemático de federais e nem de ativistas de direitos humanos.

Clínica-geral do crime

No México, os cartéis dominam todo o tipo de crime. O comércio de drogas é apenas um deles. O tráfico de pessoas e o contrabando de veículos são duas outras facetas muito lucrativas, assim como a corrupção política com finalidade de participação em atividades legais (como construção civil).

Além disso, há o sequestro: no estado de Tamaulipas, por exemplo, a cada ano 11 pessoas num grupo de 100 mil são sequestradas, padrão sem igual na América.

No Brasil, a situação é similar. O tráfico de drogas (e armas) serve de base da receita das facções, que também aplica recursos em veículos e assaltos.

A preocupação em lavar o dinheiro é menor que no México. Ainda são poucas as ligações detectadas dos chamados ¿colarinhos brancos¿ com o tráfico. Em compensação, algumas facções criminais brasileiras exibem domínio territorial, sobretudo em favelas — algo raro no México.