CORREIO DO POVO: PMs em mobilização

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Ainda descontentes com o parcelamento dos salários, policiais militares ameaçam realizar protestos no Estado caso o governo encaminhe projetos polêmicos à Assembleia Legislativa

PAULO ROBERTO TAVARES CORREIO DO POVO

A movimentação dos policiais militares do Espírito Santo e do Rio de Janeiro deixou em alerta os PMs gaúchos. Nos dois estados ocorreu e ainda acontece aquartelamentos, com familiares trancando as entradas dos quartéis. No Rio Grande do Sul a situação difere um pouco, mas se mantém a mobilização. Entidades de classe estão em negociação com o governo do Estado para que projetos polêmicos e tidos como prejudiciais à categoria não sejam enviados à Assembleia Legislativa. Se o governador José Ivo Sartori resolver encaminhar as propostas, a possibilidade de acontecer protestos é tida como praticamente certa. O secretá- rio de Segurança Pública, Cezar Schirmer, pensa diferente. Segundo ele, “a situação do Espírito Santo é totalmente diferente da vivida pelos PMs no RS”, comentou o secretário. “Lá, os policiais não recebem reajustes há mais de quatro anos”. No próximo dia 8, a Associação dos Sargentos, Subtenentes e Tenentes da Brigada Militar (ASSTBM) fará reunião no interior do Estado. O motivo, de acordo com o presidente da entidade, Aparício Santellano, é discutir o plano do governo. Dependendo do que o Executivo estadual fizer, acentuou Santellano, a categoria irá reagir. “Estamos em alerta”, acentuou. “Principalmente depois do Carnaval, que é quando os projetos devem ser enviados à Assembleia Legislativa.” A revolta na caserna se deve a projetos que cortam direitos adquiridos, além de aumentar o tempo de serviço dos policiais militares, em especial das mulheres. Segundo Santellano, a classe está sendo apontada como culpada de todos os males do Estado. “Nós (brigadianos) somos servidores estaduais como qualquer outro”, afirmou o presidente da ASSTBM. “Não devemos ser bodes expiatórios das mazelas do Estado”, disse Santellano. Segundo o sindicalista, o clima na caserna está ficando cada dia mais tenso. Muitos associados estão a favor de um motim, com fechamento das entradas dos quartéis. Santellano citou o exemplo do Espírito Santo e do Rio de Janeiro, onde os policiais militares de aquartelaram, gerando uma onda de medo nas cidades. “Foi o caos, principalmente em Vitória, no Espírito Santo”, comentou o líder sindical. “O governo tem que parar com essa ideia de pagar para ver, pois muitos brigadianos estão a favor de paralisação.” Segundo o presidente da ASSTBM, a movimentação, se ocorrer, poderá ser aos moldes do que ocorreu em 2015. Na época, recordou Santellano, houve uma ideia de um grupo de que as mulheres dos policiais militares poderiam trancar as saídas das unidades. Segundo ele, o ato durou quase uma semana e deixou a cidade assustada. “Se o governo confirmar o envio dos projetos, como está ameaçando, pode ocorrer um movimento como aquele”, disse Santellano. “E, desta vez, mais organizado do que aquele de dois anos atrás, afinal fomos pioneiros nesse tipo de protesto”, comentou o presidente da entidade.

A movimentação dos policiais militares do Espírito Santo e do Rio de Janeiro deixou em alerta os PMs gaúchos

O CASO DE 2015 .

Em 1? de setembro de 2015 mulheres e parentes de brigadianos se reuniram e se posicionaram em frente aos prédios dos batalhões, tanto em Porto Alegre quanto no Interior. Além disso, elas, juntamente com integrantes das entidades de classe, se reuniram em frente ao Palácio Piratini. No local, foi colocado um chapéu para pedir colaboração da população que passava pelo local. No Interior, a Associação dos Policiais Militares (APM) promoveu passeata em algumas cidades, para mostrar o difícil momento pelo qual os brigadianos e suas famílias passavam. Na época, muitos comandantes de unidades forçaram a tropa a ir às ruas usando saídas alternativas. Foi o caso do 15? BPM, de Canoas. Os soldados tiveram que caminhar por um matagal situado nos fundos do quartel para tomarem um veículo da BM, que os levou para fazer o policiamento ostensivo. Em Canoas, as mulheres dos praças fizeram um cordão ao redor dos maridos, que estavam em forma para irem para o patrulhamento, não os deixando sair do quartel. Um dos soldados não resistiu e acabou chorando.

PREOCUPAÇÃO .

Leonel Lucas, presidente da associação que representa os integrantes de nível médio da Brigada Militar, Abamf, se diz muito preocupado com o que tem visto nos últimos dias nas ruas. Muros pichados com frases de incentivo a um motim começaram a aparecer na Capital. “A preocupação é fora do quartel”, ressaltou Lucas. “É com quem não conhecemos e não sabemos o que pretende realmente, pois não aparece nenhuma liderança”, afirmou o presidente da Abamf. Um motim no atual momento não é aconselhável, segundo o sindicalista. Lucas ressaltou que o governo Sartori tem alguns projetos que tiram os direitos conquistados dos policiais militares, como, por exemplo, o aumento do tempo de serviço, além de não permitir mais o averbamento da licença-prêmio, tornando obrigatório fazer algum curso no período da licença. “Querem que o brigadiano vá estudar”, disse. “Quem vai pagar pelo curso?” Após tomar conhecimento do projeto, segundo Lucas, o efetivo da BM — em especial os praças — ficou revoltado. O presidente da Abamf ressaltou que desde o ano passado a situação está perigosa. No final de 2016, os policiais militares já queriam realizar assembleia. A proposta era cruzar os braços, como ocorreu no Espírito Santo e no Rio. “A BM atualmente é um caldeirão”, comparou Lucas. “A qualquer momento pode ferver e transbordar”, disse Lucas, afirmando já estar recebendo muitas mensagens, por e-mail e WhatsApp, de PMs que querem a paralisação das atividades imediatamente. Até o momento, contou o líder sindical, estão em andamento negociações com o comando-geral da BM e com o secretário de Segurança Pública, Cezar Schirmer. A reivindicação maior é que os projetos não sejam apresentados à Assembleia para votação. “Estamos tendo um bom diálogo com as autoridades. Mas, se o governo insistir em apresentar esses dois projetos, entre outros, não sei o que pode ocorrer”, afirmou Lucas. “Se é que a paralisação não sai antes. Está ficando difícil contornar a situação”. O maior problema é o parcelamento dos salários, inclusive do 13?, que será pago em 12 vezes. Familiares de brigadianos reclamam da situação de penúria a que foi jogado o efetivo dos praças da corporação. Muitos estão devendo até o aluguel ou não estão podendo manter mensalidades da escolas dos filhos, além de outras dificuldades. Os familiares como um todo reivindicam um plano de carreira para os praças. Segundo eles, há 10 anos há uma estagnação neste sentido. A ameaça dos familiares é que se o “governo não cumprir suas obrigações, os quartéis terão as saídas bloqueadas, como ocorreu em 2015”. O coordenador-geral da Associação dos Bombeiros do Estado do Rio Grande do Sul (Abergs), Ubirajara Pereira Ramos, disse que a entidade, no caso de paralisação dos brigadianos, seria solidá- ria. No entanto, segundo Ramos, os bombeiros não teriam como participar mais ativamente. O motivo: falta de efetivo. Entre dezembro e janeiro, foram fechados 23 quartéis no Rio Grande do Sul. “O déficit de efetivo é grande”, acentuou Ramos. “Em princípio, não temos nenhuma articulação no sentido de trancar os quartéis”, comentou. Segundo Ramos, algumas unidade estão abrindo um dia sim, outro não. Muitos quartéis, inclusive, estão fechando à noite, reabrindo apenas na manhã seguinte. Um dos casos emblemáticos foi o de Uruguaiana, quando ocorreu um incêndio na Penitenciária Modulada da cidade. Os bombeiros estavam em casa. “Foi preciso alguém ir na residência de um deles para pegar as chaves do portão e do caminhão”. Por esta razão, salientou, a corporação não irá se aquartelar. “O que podemos fazer é apoiar eventual paralisação dos PMs”.

Em 2015, mulheres e parentes de PMs se posicionaram em frente aos batalhões e ao Palácio Piratini, onde foi colocado um chapéu para pedir colaboração da população “A BM atualmente é um caldeirão”, compara Leonel Lucas, presidente da associação que representa os integrantes de nível médio da Brigada Militar, Abamf. “A qualquer momento pode ferver e transbordar”, completa Lucas, afirmando já estar recebendo muitas mensagens, por e-mail e WhatsApp, de PMs que mostram descontentamento com a situação.

APOIO DA FAMÍLIA .

Uma mudança de comportamento vem chamando a atenção nos últimos protestos no Espírito Santo e no Rio de Janeiro. De acordo com o integrante da Federação Nacional dos Servidores Públicos e o presidente da Amapergs Sindicato, Flávio Berneira, o funcionário, seja policial militar ou outro trabalhador, não é um ser isolado. Ele tem familiares, que sofrem com as dificuldades da classe. “A família foi à frente lutar pelos direitos também”, analisa. “O servidor, em especial da segurança pública, corre grandes riscos e a família sofre junto, o que fez com que ocorresse uma grande união”, disse Berneira. No entanto, nem sempre foi assim. Tempos atrás era comum a desagregação familiar, com a separação do casal. De 2015 para cá, ou um pouco antes, ocorreu uma mudança de mentalidade. A família ficou mais unida, lutando pelos direitos junto com o servidor. Até porque, estes entes exercem o legítimo direito de protestar, como prega a democracia. Berneira cita como exemplo as duas últimas greves da Superintendência dos Serviços Penitenciários (Susepe), que tiveram de ser encerradas por decisão judicial. “Os familiares, que não estavam sujeitos a essa determinação, podiam continuar com os piquetes”, exemplifica o presidente de Amapergs Sindicato. Segundo Berneira, as manifestações em Vitória, no Espírito Santo, e no Rio de Janeiro destacaram a participação não apenas de mulheres, mas de filhos e maridos também, pois, salientou ele, as forças de segurança não são compostas apenas de homens. “Como os policiais militares são impedidos por lei de protestar ou falar, as famílias estão tendo um papel muito importante nesse sentido”, analisou Flávio Berneira. “Eles (familiares) é que estão levando a público as dificuldades, angústias e riscos que os profissionais estão sofrendo”, afirmou, ressaltando que existe uma tendência muito forte de que este tipo de manifestação se alastre pelo país inteiro. Berneira lembrou que o Rio Grande do Sul foi o pioneiro neste tipo de protesto, tendo sido feito algo igual há dois anos. Para o presidente da Amapergs Sindicato, os investimentos e a valoriza- ção dos servidores definem o grau de manifestação. Segundo ele, em países onde há investimentos na área, as manifestações são poucas, mas as pessoas têm o direito de protestar, de ir à rua e mostrar o que está ocorrendo. Não é o caso, salientou Berneira, do Brasil. A segurança pública aqui, segundo ele, está sendo tratada de maneira errada, com os trabalhadores não tendo a devida valorização, além serem poucos os investimentos no setor. “A família sofre tudo isso”, afirmou. “Há atraso de salário, o risco do ente querido ser morto e as diversas privações pelas quais todos são obrigados a passar”, comentou Berneira. No atual contexto brasileiro, analisou o integrante da Federação Nacional dos Servidores Públicos, os familiares acabam sendo vítimas das agressões, sendo obrigados a muitas vezes viverem segregados devido ao temor das facções que povoam as grandes cidades brasileiras. As esposas e filhos de policiais militares, em um menor grau dos civis, se obrigam a viver quase que escondidos, muitas vezes não revelando a profissão do pai ou da mãe. “Quantas vezes não vimos policiais militares andando à paisana, com a farda e a identificação escondidas por temor de represálias ou até mesmo perseguições?”, questionou o presidente da associação dos penitenciários do Rio Grande do Sul. “Isso também irá atingir aos familiares, que vivem acuados, quase que em guetos também pelo temor de serem alvos de marginais”, ressaltou o integrante da Federação Nacional dos Servidores Públicos. Berneira salientou que a situação dos servidores da segurança pública chegou a esse patamar devido a uma série de fatores, sobretudo em função da desatenção dos sucessivos governos, tanto estaduais quanto federais, com uma área extremamente importante para a sociedade.

No Rio de Janeiro os servidores pararam as atividades, com apoio das famílias, exigindo melhores condições salariais e de trabalho

ANÁLISE .  

Para o mestre em Sociologia da Ufrgs Francisco Amorim, um dos legados mais preocupantes que a crise no Espírito Santo e no Rio de Janeiro está deixando é o fato de os estados terem começado a delegar o trabalho na área da segurança para o governo federal e este estar usando as Forças Armadas para tal fim. É algo muito preocupante, segundo Amorim. “O soldado do Exército é treinado para o combate, não para o policiamento do cidadão”, ressaltou Amorim, acrescentando que hoje os militares desempenham papel importante na vigilância das fronteiras. “O policial militar, via de regra, recebe algum treinamento para lidar com questões de estresse nas ruas das cidades”, destaca. De acordo com o mestre em Sociologia, as manifestações no Espírito Santo mostraram que mudou muito mais do que a cultura do povo. “É algo cruel, pois o PM coloca a vida em risco, mas o salário é baixo e, em alguns casos, parcelado”, analisou Amorim. “Temos de levar em consideração que, quando o salário é baixo, muitos apelam para compras consignadas e, quando o vencimento não é corrigido, as pessoas entram em desespero, pois não terão dinheiro para pagar todas as contas”, complementa. Esse atraso ou parcelamento dos ganhos, analisa Amorim, acaba refletindo no trabalho do profissional. As famílias saem à rua para defender o direito a uma vida digna, pois já vivem com muito pouco. Na avaliação dele, com atrasos, a situação acaba ficando desesperadora. “Qual será o espírito desse policial quando sair às ruas para trabalhar?”, questiona Amorim. “Com certeza não pode ser bom, pois o estresse e as preocupações com dívidas acabam atrapalhando o serviço como um todo”, comentou Amorim.

Atualmente, como os policial militares não tem permissão para fazer greve denunciando os baixos salários ou o seu atraso, as mulheres de policiais militares estão indo à rua para protestar. Os familiares, em maior proporção as esposas, estão agindo de um forma legítima, de acordo com o mestre em Sociologia, que atualmente cursa o doutorado. Na realidade, elas estão mostrando que a família — uma instituição que tem um peso grande no Brasil — está unida, que está sentindo dentro de casa os problemas de uma má gestão pública. “Na realidade, o que as mulheres estão reivindicando é comida na mesa para os filhos. É óbvio que eles estão fazendo esse movimento por terem a certeza de que não serão agredidas”, ressaltou Amorim. “Porém, esperamos que os policiais militares reflitam muito bem este momento pelo qual passam. Que entendam que eles também são servidores públicos e entendam o que a categoria como um todo sofre”, comentou Amorim. Ele ressalta que, talvez, em próximas manifestações das outras categorias do serviço público, os policiais militares possam ter mais compreensão do fato e das atitudes dos colegas. A culpa de a situação ter chegado a um ponto de ruptura, de acordo com Amorim, não é dos policiais militares, não é das mulheres, não é do cidadão, mas sim dos Estados ausentes, que acabaram delegando à União a responsabilidade pela segurança pública. Amorim, que está na cidade do Rio de Janeiro, citou o exemplo de um passeio pelo bairro de Copacabana na última quarta-feira. A cada 50 metros, mais ou menos, segundo ele, havia soldados do Exército patrulhando as ruas. “O mais impressionante é que pessoas de idade falavam que os soldados tinham que ficar indefinidamente, fazendo a segurança do local”, recordou. O também sociólogo Luciano Brito entende que o processo que ocorreu no Espírito Santo é algo maior do que apenas uma manifestação. Segundo ele, é uma nova fase de luta de classes, um reordenamento desse tipo de embate, que ficou mais evidente após o impeachment, quando o país voltou a um modelo neoliberal. “Parece existir uma espécie de articulação entre líderes políticos no sentido de provocar um arrocho, desemprego entre outras mazelas”, analisou. “Isso fez com que os trabalhadores se mobilizassem, mesmo as forças policiais, que historicamente são usadas como aparato de repressão as manifestações”, afirmou. A família ajudando no protesto, de acordo com Brito, não é algo novo, em outros momentos da história do país as mulheres foram à luta, protestando e trancando quartéis. Conforme o sociólogo, como os policiais militares são legalmente proibidos de fazer greve ou qualquer outro tipo de manifestação, as “mulheres servem como ferramenta” para este tipo de manifestação e assumem a responsabilidade de apoiar os companheiros. “A participação da mulher (esposa) dá uma ideia de família, que está sendo mobilizada, pois o conceito de família no Brasil tem um significado muito grande, muito importante”, explicou o sociólogo. “Essa participação mostra à opinião pública que não é apenas o policial, mas a família, que está reivindicando melhores condições de trabalho, salário entre outras”, analisou Brito.

 

Para sociólogo Francisco Amorim, a culpa de a situação ter chegado a um ponto de ruptura não é dos policiais militares, não é das mulheres, não é do cidadão, mas sim dos Estados ausentes, que acabaram delegando à União a responsabilidade pela segurança pública.