G1: “Jovens” de SC expõem ligação com o crime nas redes sociais

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Imagens relacionadas ao universo do crime se proliferam nas redes sociais (Foto: Montagem/Reprodução/Facebook)

Adolescentes de SC escancaram ligação com o crime nas redes sociais e preocupam autoridades

Em seus perfis, jovens chegam a usar sigla de organizações criminosas como sobrenome. G1 ouviu especialistas para entender esse comportamento.

Por Mariana de Ávila, G1 SC

A página do Facebook de João (nome fictício) tem como foto de capa a insígnia de um grupo criminoso de Santa Catarina, desenhada a caneta em folha de caderno. Na imagem de perfil, o adolescente tem o rosto coberto por um lenço, os dedos apontados para a lente, como se fossem uma arma. “O crime é por necessidade e não por fama!! Hahaha”, diz a legenda.

João tem 379 amigos na rede social, a maioria adolescentes, como ele. Dezoito optaram por se identificar no perfil com o primeiro nome e, no lugar de um sobrenome, a sigla de um grupo atuante no tráfico de drogas no estado. Nenhum deles esconde o rosto.

Assim como João e seus amigos, adolescentes e até crianças que vivem em ambientes permeados pela criminalidade – onde o tráfico de drogas é uma das portas de entrada – têm na internet um território livre onde podem medir poder, reforçar sua identificação com determinado grupo criminoso e até serem recrutados para atuar nas ruas.

Para entender a ligação entre adolescentes, redes sociais, drogas e o crime organizado, o G1 pesquisou perfis, ouviu empresas de internet e consultou especialistas e autoridades em segurança pública e educação. As fotos que ilustram esta reportagem foram todas retiradas de perfis públicos do Facebook, com fácil acesso a qualquer usuário da rede social.

Curtidas para metralhadoras

Entre as imagens de João mais curtidas por seus amigos, estão aquelas em que ele segura revólveres e metralhadoras, fotos com dinheiro que afirma ter roubado, além de mensagens em fotomontagens destinadas a grupos rivais: “Pronto para arrancar a cabeça da oposição”.

Dentro do leque de amigos de João, há alguns de outros estados. Um deles, Pedro (nome fictício), de Porto Alegre, tem como foto de perfil uma selfie tirada com outros três amigos, todos eles atrás de grades. João e Pedro travaram um embate nesta foto. Os dois se identificam como integrantes de grupos criminosos rivais.

Depois que João comentou “Brota lixo” na imagem, Pedro replicou com “Demoro’ irmão, cola aqui no presídio, p…, nós te esquartejamos ‘todo’ aqui dentro”.

Bloqueio de conteúdo

Conforme o promotor de Justiça Marcelo Wegner, da 15ª Promotoria de Justiça de Infância e Juventude em Florianópolis, mesmo quando autoridades identificam esse conteúdo, há empecilhos tecnológicos e legais para bloqueio.

“Às vezes há dificuldade de buscar esse conteúdo. Pedir bloqueio, muitas vezes, não é um processo fácil, porque os escritórios que avaliam esse tipo de pedido ficam fora do país”, disse Wagner.

 (Foto: Montagem/Reprodução/Facebook)

(Foto: Montagem/Reprodução/Facebook)

A assessoria de imprensa do Facebook explica que a política da empresa prega que conteúdos sejam banidos a partir de denúncias. Um grupo da empresa é responsável por avaliar as solicitações.

Ainda de acordo com o Facebook, na política interna está claro que a comercialização de armas, remédios e drogas é proibida na plataforma. Com isso, o conteúdo é bloqueado após a denúncia.

Entretanto, a apologia – uma foto de alguém segurando uma arma, por exemplo – não necessariamente será avaliada como conteúdo ofensivo, precisando de uma análise mais aprofunda do contexto, legenda e comentários relacionados à publicação.

Por nota, a empresa diz que “a segurança das pessoas em nossa plataforma é a nossa maior responsabilidade. Nossos Padrões de Comunidade proíbem o uso do Facebook para promover ou facilitar atividades de crime organizado, e removemos conteúdo desse tipo assim que ficamos cientes. Além disso, cooperamos com autoridades locais quando recebemos pedidos relacionados a investigações criminais”.

Dependendo do grau de reincidência, o perfil do usuário pode ser bloqueado por algumas horas ou suspenso, conforme avaliação, informou a assessoria de imprensa do Facebook.

No Youtube e Instagram, os jovens que se identificam com grupo criminosos também chegam a postar hinos, gravar crimes e usam hashtags em alusão à criminalidade. A assessoria de imprensa das duas plataformas confirmou utilizar o mesmo sistema do Facebook, de excluir o conteúdo após denúncia e avaliação de um grupo da empresa.

Status e hierarquia

João faz postagens praticamente diárias. Em todas elas, usa a sigla do grupo criminoso e uma mensagem de apoio aos “irmãos” ou para assustar os inimigos: ” (Sigla) pros que honram a batalha”, “(Sigla) Mata ele que tá na ‘toka'”, “(Sigla) ‘q’ predomina ‘n’ estado”.

Para a professora Ana Maria Borges de Sousa, integrante do Núcleo Vida e Cuidado: Estudos e Pesquisas Sobre Violências (NUVIC) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), nas “irmandades criminosas” o jovem é levado a acreditar que, quanto mais destemido, maiores são as chances de ocupar posições superiores de comando.

 (Foto: Montagem/Reprodução/Facebook)

(Foto: Montagem/Reprodução/Facebook)

“É esse status que tece as hierarquias num grupo social, que reforça a expressão de poder-dominação, que faz emergir um tipo de ascensão que se manifesta, inclusive, na coragem de compartilhar imagens criminosas publicamente nas redes sociais, sem medo de ser punido”, diz Ana.

Ainda segundo a professora, o poder de armas, roupas e gestos é muito replicado entre traficantes. “Esses sujeitos recebem e compartilham os modelos de educação transmitidos por diferentes espaços institucionais, civis, culturais, ou seja, aprendem com adultos”, completa a professora.

De acordo com a delegada Tânia Harada, que atuou por dois anos na Delegacia de Proteção a Criança, Adolescente, Mulher e Idoso (Dpcami) de Joinville e atualmente é responsável pelo Delegacia Regional de Joinville, os jovens que confessam participar de crimes veem o status de ser criminoso supervalorizado.

“Alguns menores apreendidos falam que as meninas gostam, tem o quesito sedução também. Nós tentamos mostrar que o problema é bem mais grave, que naquele meio ele será facilmente substituído, morto”, diz a delegada Tânia Harada.

Aliciamento

De acordo com o promotor de Justiça Marcelo Wegner, via de regra o adolescente que pratica crimes tem um histórico de envolvimento familiar com a ilegalidade, ou vem de lares desestruturados, algumas vezes sem um dos pais presentes.

“Muitas vezes, não ter bases ajuda o aliciamento por essas facções. Efetivamente sem um vínculo, com o pai desconhecido, é uma forma de ser reconhecido. Colocar o sobrenome da facção é uma forma de empoderamento”, ressalta o promotor.

Vídeos viram provas

Na cidade onde João diz residir, Joinville, no Norte catarinense, um vídeogravado em fevereiro de 2016 e compartilhado em redes sociaismostrava a decapitação de um jovem de 16 anos. Na época, as imagens, que deveriam servir como mensagem dos adolescentes de um grupo criminoso para outro, também viraram provas para ligar os envolvidos no caso. Sete pessoas foram presas, com cinco já condenados.

De janeiro a abril de 2017, conforme dados da Secretaria de Sergurança Pública (SSP), foram feitas 690 apreensões de adolescentes em Santa Catarina. Dessas, 523 foram flagrantes e 167 por ordem judicial. Somente em Joinville, neste período, foram 159, com 134 flagrantes e 25 mandados.

Ainda conforme a SSP, em todo o ano de 2016, 2.046 apreensões de adolescentes foram feitas no estado, 1.433 em flagrante e 615 por ordem judicial. Já em 2015, o total de adolescentes apreendidos foi de 1.600, com 1.126 flagrantes e 474 por ordem judicial.

Culpa assumida

Segundo o promotor Wegner, o número de adolescentes que atuam no crime pode ser ainda maior, pela fragilidade do sistema de apreensão de menores. “Não são poucos os casos de gravidade com envolvimento de adolescentes que acabam não sendo apreendidos por falta de vaga no sistema. Ou a vaga é cedida para algum que tem mais gravidade”, afirma o promotor.

E nem sempre os que são apreendidos são culpados. “O que também acontece nas facções é um adolescente “assumir a bronca”, como falamos, no lugar de adulto. Mas tem casos, por exemplo, que o assalto é feito e os dois suspeitos estão de capacete. Um deles atirou. Se o adolescente assume, fica difícil a investigação provar o contrário”, diz Wegner.

A delegada Tânia Harada acredita ser importante ressaltar que nem todos os crimes expostos na rede social de fato ocorreram. “Só a postagem não pode caracterizar o crime, é necessário investigação. Sabemos que o adolescente é muito inconsciente, de um modo geral, na forma de se expressar. O suposto faccionado pode ter nenhuma ligação”, completa.

Prevenção na infância

Conforme a delegada, na questão psicológica e preventiva, a polícia trabalha principalmente com crianças menores, nas escolas. “Já atendi casos de crianças com 12 anos, autores de crimes graves, reincidentes, por isso é preciso atuar nas escolas com os menores ainda”, disse Tânia.

Para o promotor de Justiça Marcelo Wegner, mudar os valores na faixa etária da adolescencia é uma tarefa árdua, principalmente entre os que têm uma situação de vulnerabilidade.

“Muitas vezes, para esses adolescentes, o que importa é o dia, a semana. Não há perspectiva. Eles tatuam ‘vida loka’. Querem apenas poder comprar um tênis legal com o dinheiro do tráfico”

Wegner ainda completa que, em algumas situações, dentro da medida socioeducativa aplicada, é solicitado o atendimento psicológico. “Mas por falta de espaço de agendamento, falta de profissional, às vezes não acontece. Há equipes multidisciplinares nos Creas [Centro de Referência Especializado de Assistência Social] para esse atendimento, mas ainda é pouco”, diz o promotor.

No Ministério Público, há uma campanha na linha protetiva, para que pais acompanhem o que filhos fazem na internet. “O cuidado é principalmente para a navegação segura. O foco tem que estar na privacidade. Os pais condicionarem o uso do computador, do celular. Que o filho esteja de porta aberta no quarto enquanto usa internet”, afirma.

Já de acordo com a professora do NUVIC da UFSC, entre as soluções para manter os jovens longe dos cenários da criminalidade estão programas ligados à música, à dança, ao teatro, às artes em geral, além da reinserção na escola e de ações que possam gerar conhecimento e renda.

“Eu diria que estes jovens são as vítimas preferenciais de uma sociedade bélica, distorcida em seus valores e imoral no modo de governar o país”, completa a professora.