OSCAR BESSI: Quando morrem os anjos

TGFPor Oscar Bessi

Essas semanas de inspiração religiosa deveriam ser diferentes. E trazer dias tão pacíficos que parecessem uma pausa, um suspiro coletivo, reflexão. A ponto de se sentir, no ar, certa ternura palpável a fulgir em olhares e gestos mínimos, instintivamente fraternos e solidários. Bobagem. Somos humanos. Os predadores do planeta, a espécie que se diverte matando e morrendo, que usa a maior parte de sua incrível inteligência para violentar. E, por mais que fujamos à regra, sempre haverá quem, ao nosso lado, dê a mínima ao que possa significar amor, paz ou piedade. Enfim. É Páscoa. Tragam os chocolates que o dever está cumprido.

Terça-feira. Seria só mais uma semana de assaltos a bancos, tiroteios e por aí vai. No meio da manhã eu voltava da capital, onde fora resolver questões administrativas da Associação Gaúcha de Escritores, e ouvia a Rádio Guaíba. Acompanhava as notícias sobre o atentado terrorista em Bruxelas. A cada atualização subia o número de mortos e feridos. A brutalidade dos fanáticos me impressiona, seja com bombas ou meros discursos. Eu precisava ajustar os últimos detalhes da minha equipe em mais uma etapa da Operação Avante, ação que a Brigada Militar desenvolve em todo o estado a fim de frear o ímpeto da criminalidade, mas lia o que alguns amigos repassavam pelo celular. O Estado Islâmico, na chamada internet profunda, agradecia pelas “mortes abençoadas”. E exibia desenhos do personagem infantil belga Tintim decapitado. Bah. Eu conversava com um colega justamente sobre esse sadismo atroz, inescrupuloso, quando recebi a missão de ir à Bom Princípio prestar apoio à guarnição local e à Polícia Civil. Abortamos o almoço e fomos. Triplo homicídio, disseram. Mas os tristes detalhes destes crimes eu conheceria apenas no local, numa das tardes que entrou para a galeria, já bem grandinha, das piores da minha vida.

Um lugar pacato. Um apartamento em sangue. No quarto, sobre a cama, o punhal de combate. A jovem mãe esfaqueada ao lado das filhas. Uma com apenas cinco anos, um pequeno anjo, uma bonequinha. Ao outra, quinze anos, fones de ouvido e suas músicas de sonho com uma vida pela frente ainda perto dos cabelos ensanguentados. Os bombeiros visivelmente abalados com as mortes. Preso, o assassino fingia desmaiar e nos falava de ciúmes. Uma terça-feira de breu. Dia de anjos morrerem pela doentia e múltipla concepção de posse dos homens. À noite, na estrada, na volta pra casa, eu pensava que a vida policial no fim das contas é ver e assimilar desgraças. Bestialidades. Até considerá-las banais. E ainda ter que aceitar a falta de consideração de uns e outros. Merecíamos mais. Todos nós, cidadãos. Enfim. Os dias seguem iguais no andar da humanidade. Vamos aos chocolates, que o dever estará cumprido.

CORREIO DO POVO