Análise – A vida do policial importa

FUNERAL DO SOLDADO FERNANDO NEVES DA CUNHA - A cerimonia de enterro do Soldado Fernando Neves da Cunha, que ocorreu no começo desta quinta-feira (02) no Mausoléu da Policia Militar no Cemitério do Araçá, região central de São Paulo. (Foto: Marcelo Brammer / Brazil Photo Press).
FUNERAL DO SOLDADO FERNANDO NEVES DA CUNHA -SP IMAGEM ILUSTRATIVA

Análise – Policiais abatidos

Rafael Alcadipani* – O Estado de S.Paulo

No último domingo, 22 de maio, ao acordar na cidade de Boston, Estados Unidos, e ligar a televisão local, havia as imagens de inúmeras motos da polícia, em linha, abrindo a passagem para um carro funerário. Nele, estava o corpo de um policial que fora morto naquela madrugada ao abordar um suspeito dentro de um carro. A TV estava há horas repercutindo a história, e assim prosseguiu. Policiais de toda a redondeza da cidade de Aurun, onde o policial trabalhava, deslocaram-se para prestar as últimas homenagens ao policial que morreu cumprindo o seu dever. As polícias de toda a região uniram esforços e o atirador foi preso horas depois. O governador do Estado se pronunciou, assim como demais autoridades. Em conversa com policiais nos EUA, eles me relataram que os próprios bandidos evitam ao máximo matar policiais. Sabem que o peso da lei recairá de maneira forte sobre os assassinos de policiais que serão perseguidos e presos a longas penas. 

No mesmo final de semana, dois agentes da lei foram assassinados em São Paulo. Em ambos os casos, os policiais foram executados em casa. No caso de um guarda municipal no interior do Estado, ele não apenas foi morto, mas tentaram degolar o seu corpo. Tive acesso a um áudio de um colega do GMC morto em que, desesperadamente, desabafava “nós estamos sendo abatidos como animais!”. Em levantamento realizado pela assessoria do deputado federal Subtenente Gonzaga, que computa as mortes de policiais no Brasil, fica claro o tamanho do problema. Nos dois primeiros meses deste ano, 140 policiais foram mortos no Brasil. Os dados ainda estão incompletos. Recente reportagem de ‘O Estado de S. Paulo’ mostra que um PM é assassinado a cada quatro dias no Rio de Janeiro. O assassinato de colegas é parte cotidiana da vida do policial no Brasil. Nada, absolutamente nada, é feito tanto pela sociedade (que naturalizou as mortes), quanto pelos governos. Policiais estão sendo abatidos às dezenas, semanalmente em todo território nacional. Isso sem falar nas grandes dificuldades que policiais enfrentam em seu cotidiano. O absurdo que encaram em seu dia a dia faz com que o discurso do ‘confronto’, da ‘guerra’ e do enfrentamento ganhem força em detrimento da ação policial inteligente e planejada. Os chamamentos ‘à forra’ são crescentes. Mas, no limite, o recrudescimento do confronto apenas irá levar a mais morte, a mais dor. O problema é que enquanto a nossa sociedade e os nossos governos não enfrentarem a epidemia da execução dos policiais brasileiros, teremos grandes dificuldades para avançar uma reforma das instituições de Justiça Criminal, tão urgente ao Brasil. A situação é alarmante. É impossível ver seus amigos e colegas serem abatidos e manterem a serenidade. Governo e sociedade não podem seguir lavando as suas mãos sujas de sangue, sangue de policiais que colocam a sua vida em risco para proteger a sociedade. O caso dos EUA mostra que é preciso a elaboração de políticas que protejam os policiais e também articulações da sociedade para que este quadro de horror seja revertido.

A vida do policial importa

Texto publicado originalmente no Estadão Noite

Dados publicados no Anuário de Segurança Pública de 2015 mostram que ao menos um policial é morto por dia no Brasil.  De acordo com levantamento do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e do Núcleo de Estudos sobre Organizações e Pessoas, da FGV – EAESP, realizado no ano passado com mais de 10 mil policiais das diferentes forças policiais em todo o País, 61,9% dos que responderam a pesquisa relataram que tiveram algum colega próximo vítima de homicídio em serviço. Fora de serviço, o número passa para impressionantes 70% dos policiais cujos colegas próximos foram vítima de homicídio. É raro passarmos uma semana sem um caso de execução de policiais relatado na imprensa. Não é apenas o homicídio que ameaça a vida dos policiais brasileiros. O suicídio e o adoecimento acarretado pelo estresse e pelas dificuldades que os policiais enfrentam em seu dia a dia compõem o drama cotidiano da profissão em nosso país.  Recentemente, o cineasta José Padilha, diretor de Tropa de Elite e da série Narcos, argumentou em entrevista que o absurdo foi naturalizado no Brasil, e a facilidade com que a sociedade brasileira aceita o morticínio de policiais deixa o fato constatado por Padilha ainda mais evidente.

A vulnerabilidade do trabalho policial tem na frequência com que policiais são vitimados fatalmente a sua face mais repugnante. Porém, não podemos deixar de considerar que há todo um sistema que contribui para a fragilidade da profissão no País. Em primeiro lugar, destacam-se as péssimas condições de trabalho com que policiais lidam no dia a dia. Sobram histórias de armas fornecidas pelo Estado que às vezes falham, às vezes disparam sozinhas. É insistentemente comum que policiais tenham que comprar equipamentos para poder realizar as suas funções. Há casos em território nacional em que os policias precisam levar para o serviço o próprio papel higiênico. Isso sem falar que o apoio psicológico é privilégio de poucas polícias brasileiras. Um segundo aspecto é a baixa remuneração. Policiais brasileiros, com grande frequência, precisam ter trabalhos fora da polícia para poder complementar a renda familiar. A remuneração inadequada e insuficiente deixa os policiais em situação de extrema vulnerabilidade. Em terceiro lugar, há o fator medo que ronda diuturnamente a mente dos policiais. Muitos chegam ao ponto de precisar esconder de seus próprios vizinhos a profissão que exercem.

Diante deste contexto, medidas urgentes precisam ser tomadas para romper esse círculo vicioso que gera o morticínio nas polícias. É fundamental uma articulação dos governos para fornecer aos policiais condições reais de trabalho, com equipamentos adequados e efetivo condizente com os desafios do País. Parcerias com universidades poderiam ser úteis para mitigar problemas como a falta de apoio psicológico. Outro ponto importante é a melhoria da remuneração, que poderia também ocorrer em forma de salário indireto. Por exemplo: policiais poderiam ter benefícios fiscais e também juros subsidiados para comprar casa e arcar com a educação de seus filhos, por exemplo. É urgente, ainda, a produção de pesquisas que esmiúcem as causas do morticínio de policiais no País. Os governos, também, precisam mostrar mais sensibilidade para o problema agilizando a liberação das indenizações dos policiais vitimados e buscando amparar as famílias das vítimas. Mas, antes disso, seria fundamental agir nas causas do problema. Finalmente, campanhas como a capitaneada por membros do Garra da Polícia Civil de São Paulo são fundamentais para conscientizar a sociedade da importância de se preservar a vida de nossos policiais. A vida do policial importa, e muito.

* Rafael Alcadipani, professor de Estudos Organizacionais da FGV-EAESP e visiting scholar no Boston College, EUA, e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública