Muitas prisões, poucas punições

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A reportagem do Pioneiro acompanhou, na segunda-feira, um turno de trabalho do 12º Batalhão de Polícia Militar
Foto: Marcelo Casagrande / Agencia RBS

O que significam as 2 mil detenções realizadas pela BM de Caxias em 2016

INFOGRAFIA

Guilherme Ferrari PIONEIRO

A Brigada Militar (BM) de Caxias do Sul efetuou 2.057 prisões em 2016. Em média, são cinco suspeitos conduzidos para a delegacia todos os dias. Seria suficiente para encher três vezes as duas casas prisionais da cidade — projetadas para abrigar 730 detentos. Então, por que os índices criminais continuam a crescer e a comunidade sente a falta de policiais nas ruas? A resposta parece estar na quantidade de ocorrências atendidas pela BM que não resultam em nada — como acidentes de trânsitos, brigas de casal e recuperações de veículos. Para exemplificar o volume de trabalho e a frustração dos próprios policiais de ver autores de pequenos delitos saírem impunes, o Pioneiro acompanhou um turno de trabalho da corporação na tarde da última segunda-feira. O resultado: abordagens em dois bairros, nove atendimentos de ocorrências variadas, mas das pessoas conduzidas ao plantão da Polícia Civil, nenhum foi recolhido ao sistema penitenciário.

É importante notar que estes atendimentos são obrigações da BM. Porém, não há como negar que estas ocorrências menores consomem tempo e dificultam o principal objetivo dos policiais que, de acordo com o comando do 12º Batalhão de Polícia Militar (12º BPM), é o combate aos roubos, assassinatos e tráfico de drogas.

— O que nos inconforma é que em muitos crimes só se faz o registro e a pessoa (suspeita) é liberada. Mas, necessariamente, esta pessoa precisa ser apresentada na delegacia. Em muitos casos, é necessário o uso da força e de algemas, condução por vários quilômetros e aguardar horas pelo atendimento na delegacia para o autor ser liberado logo após o registro. Se é meramente o cumprimento de uma formalidade, por que o policial militar não pode fazer este registro? Por que este documento feito pela BM não serve como o registro feito na delegacia? — questiona o major Jorge Emerson Ribas, comandante do 12º BPM.

Dos 10 delitos que mais resultaram em detenções pela BM no ano passado, apenas dois estão entre os principais indicadores criminais estipulados pela Secretaria Estadual de Segurança Pública (SSP): roubo a pedestre (que aparece em 7º na lista com 119 prisões) e tráfico de drogas (em 8º, com 118 suspeitos presos).

No topo da lista, aparecem homens e mulheres envolvidos em crimes de receptação e furtos. Apesar de incomodar a comunidade, são delitos afiançáveis e assim, na maioria das vezes, não terminam com o suspeito recolhido a um presídio. Contudo, receptação e furtos impulsionam roubos e tráfico de drogas.

— São situações que prejudicam e muito o combate a criminalidade, principalmente em termos de prevenção. A lei, em grande parte dos casos, perde o respeito. Receptação e furto são alguns dos crimes que não impõe respeito nenhum de penalidade. Qual é o crime para posse de entorpecente? Não há pena. Tem que se inverter essa lógica. A legislação precisa impor respeito — opina o major Ribas.

Números da BM em 2016

 Receptação, o crime que compensa

O artigo 180 do Código Penal talvez esteja no centro da discussão sobre o prende e solta. No papel, o crime de receptação se refere a adquirir, receber ou ocultar coisa que sabe ser produto de crime. A imagem clássica seria de desmanches de veículos e o comércio clandestino. Na prática, o delito fica escancarado quando há flagrantes de suspeitos com carros roubados ou furtados. Nesse caso, como não há prova da autoria do crime, essa pessoa é autuada por receptação. Para as autoridades em segurança pública, portanto, a receptação é um crime que compensa.

— A receptação é realmente muito frustrante. A legislação permite o pagamento da fiança e estimula os crimes de furto e roubo, principalmente de veículos. Hoje, o crime de receptação compensa. Se for pego em flagrante de furto, vai pagar fiança. Se for pego depois, será receptação e também paga fiança. São valores menores que o do carro que ele está roubando ou furtando. A receptação hoje é quase que diária. Anos atrás era rara. A lei abrandou tanto que inverteu a lógica da compensação — lamenta o major Ribas.

A promotora da 4ª Vara Criminal, Ana Paula Bernardes, concorda com a opinião do comandante. Ela explica que, como a pena é de um a quatro anos de reclusão, o réu tem direito a benefícios legais que incluem até a extinção da pena. Uma situação que não condiz com a capacidade danosa da receptação, um crime que advém de outro delito e, via de regra, irá fomentar novos crimes.

— A receptação é um delito que, obviamente, quem pratica acha bom. Porque não vai pegar uma grande pena, isso se pegar alguma pena e se responder ao processo. Por isso que quase sempre quem recepta no início de “carreira” criminosa pode ser liberado de imediato. Não é regra, e isso ocorre ainda menos quando conseguimos relacionar ao comércio, a crimes violentos ou ao tráfico de drogas. Tudo depende das circunstâncias. Pode ser que fique preso — avalia a promotora criminal.

O inciso 3 do artigo 180 determina que se o criminoso é primário, o juiz pode, tendo em consideração as circunstâncias, deixar de aplicar a pena. Porém, no cotidiano policial, o que se percebe são criminosos com extensas fichas criminais de receptação e que permanecem soltos, caso de Davi Rodrigues Franca.

— É um delito de médio potencial ofensivo e tem direito a este tipo de benefício. O delegado vai autuar pela receptação e fazer o flagrante, mas o juiz que olha e avalia que há o direito. O MP até pode oferecer a denúncia, mas terá de oferecer este benefício legal e o réu não vai nem responder ao processo, só cumprir umas condições e ter extinta a punibilidade. O juiz obviamente faz este cotejo, que realmente tem que ser feito. O que está escrito na lei e o que efetivamente vai acontecer com esta pessoa. Deixar recolhida esta pessoa, no raciocínio de presídios superlotados, por uma receptação que vai ter um benefício legal e não vai nem responder ao processo? — indaga a promotora Ana Paula.

A representante do Ministério Público reforça que a postura contra os crimes de receptação é cada vez mais rigorosa.

— Este delito é uma erva daninha. A gente corta, mas ele vem de novo. Nós trabalhamos para manter este tipo de receptador presos e muitos ficam. Se um juiz depois libera, o nosso trabalho é para ficar preso — afirma a promotora.

Em 2016, Franca mobilizou a BM e sempre saiu livre

Davi Rodrigues Franca, 27 anos, é um exemplo do esforço perdido da BM. Foram seis prisões em flagrante, todas relacionadas a furto ou à receptação, o que mobilizou, ao menos, 12 policias militares e um total de 12 horas numa delegacia. Apenas no sexto flagrante, ocorrido em setembro, é que Franca ficou efetivamente preso. Pelo menos até 17 de janeiro, quando foi novamente beneficiado com a liberdade.
Apesar de responder a 11 processos em andamento e ter três condenações (todas sob recursos em instâncias superiores), tecnicamente, para a Justiça, Franca ainda é réu primário e pode usufruir de benefícios legais.

 As prisões

28 de abril de 2016

Franca era o motorista de um Monza furtado no bairro Rio Branco. Os policiais encontraram a carteira da vítima dentro do carro. Franca alegou aos policiais que havia trocado o Monza por drogas. Ele deu entrada no sistema penitenciário às 5h55min e foi liberado às 17h22min do mesmo dia.

14 de junho de 2016

Franca foi flagrado num Uno furtado na Rua Carlos Mauri, no Rio Branco. Deu entrada no presídio às 15h e foi liberado às 20h.

3 de agosto de 2016

A BM flagrou Franca e um comparsa desmanchando um Gol furtado. Ele confessou ter utilizado uma chave micha para furtar o carro. Foi liberado do presídio no dia seguinte. O outro homem também não ficou recolhido.

6 de agosto de 2016

A BM flagrou Franca e uma mulher tentando vender uma Saveiro furtada no bairro Reolon. O casal foi preso por receptação. Ele carregava três porções de crack. Franca permaneceu dois dias preso antes de ser solto. A mulher também ganhou a liberdade.

20 de agosto de 2016

Franca estava na direção de um Escort estacionado em frente a um ponto de tráfico no bairro Esplanada. O carro era furtado e, em seu interior, foram apreendidos diversos celulares e outros objetos sem procedência (prováveis produtos de crime). Franca também carregava uma porção de crack. Ele entrou num presídio às 17h e foi solto às 19h50min.

A lei que responde ao apelo das vítimas

A Brigada Militar costuma ser muito cobrada durante a repercussão de casos graves nas redes sociais. Só que, além de registrar e combater a crimes, o policiamento ostensivo é marcado por ocorrências banais que consomem tempo. É nesta rotina que os policiais acabam desenvolvendo um importante trabalho social: mediar conflitos. São atendimentos a desavenças entre vizinhos, de perturbação do sossego, confusões em bares e, principalmente, casos de violência doméstica. Não por coincidência, a Lei Maria da Penha foi o principal motivo das prisões no ano passado, com 297 agressores conduzidos à delegacia.

— A Lei Maria da Penha é um raro exemplo em que a legislação impõe respeito e intimida o autor. É notório que o agressor irá para a cadeia. As mulheres sabem que há esta resposta e, até por isso, ligam mais. Há um grande número de chamados em comparação com outros crimes em que a população sabe que não dá nada — explica o major Ribas.

Para o assessor da Promotoria da Violência Doméstica, Mateus Casarotto, a Lei Maria da Penha tem mecanismos que possibilitam uma resposta mais rápida para o problema.

— As medidas cautelares, como o afastamento do lar e proibição de contato com a vítima, são importantes para cessar as agressões. E, no caso de descumprimento, permitem a prisão preventiva do agressor. Além disso, são prazos de 48 horas, previsto na legislação, então é uma resposta rápida (do Judiciário) — opina.

 30 dias apenas em acidentes de trânsito

Além das mais de 2 mil prisões em flagrantes em 2016, a Brigada Militar confeccionou 1.280 termos circunstanciados no mesmo período. Foram registros no local da ocorrência para crimes de menor potencial ofensivo. Metade destes documentos são referentes a delitos de trânsito, sendo 726 atendimentos que envolveram acidentes com lesões.

— Quando há feridos no acidente, o registro é de um crime de trânsito e, por isso, é a polícia quem faz o atendimento. A Polícia Rodoviária é a responsável pelas rodovias estaduais e federais. Na área urbana, é com a BM. É um atendimento que possui uma documentação bem extensa e nos demanda muito tempo. Além do atendimento do local do acidente, normalmente, é necessário deslocar até o hospital para falar com a vítima — aponta o major Ribas.

Na segunda-feira, a colisão entre um motociclista e um caminhão no bairro Sagrada Família ocupou uma hora da jornada de trabalho de dois policiais militares. O atendimento até foi rápido, porque o condutor do caminhão não aguardou a chegada da fiscalização e não foi necessário a remoção dos veículos. Assim, só houve a necessidade de ouvir apenas a vítima no Pronto Atendimento 24 Horas (Postão). Caso contrário, a ocorrência poderia ultrapassar as três horas de atendimento.

Considerando o tempo mínimo de uma hora, é como se uma equipe de PMs tivessem passado 30 dias apenas registrando acidentes de trânsito em 2016. Tempo este que poderia ser utilizado em ações de policiamento.

— Estes atendimentos acabam sendo uma questão mais administrativa do que policial. O que fizemos para dar celeridade é o uso de tablets, que tem seu projeto piloto em Caxias.

O comandante do 12º BPM se refere ao projeto Brigada Online, lançado em outubro. De acordo com o cálculo da BM, o uso de tablets com aplicativos específicos para registros de TCs pode reduzir em 60% o tempo total de atendimento da ocorrência — desde o acolhimento ao cidadão até o envio do documento à Polícia Civil ou ao Poder Judiciário. Em seu primeiro mês de atuação, foram realizados 224 procedimentos de forma digital. O número representa cerca de 15% de todos os documentos produzidos pela BM de Caxias por mês. No atendimento de segunda-feira, a guarnição responsável não era uma das participantes do projeto piloto.

Principais TCS DE 2016

 Recuperação de veículo

Em 2016, a BM recuperou 1.922 veículos que estavam em situação de furto ou roubo. Para atender estas ocorrências, os policiais militares precisam esperar pelo guincho para a remoção do automóvel, o que pode levar horas. Duas empresas são licenciadas para prestar o serviço em Caxias. Se considerar o tempo médio de uma hora para cada veículo recuperado, é como se dois PMs tivessem ficado mais de dois meses parados esperando pelo guincho.

— Eventualmente é uma demora maior que o normal. Os dois centros credenciados atendem a demanda, mas, eventualmente, há uma demora demasiada. Não é uma regra, mas, infelizmente, nos traz prejuízo. Acredito que na maioria das ocorrências o tempo de espera é menor que uma hora — aponta o major Ribas.