A divisão do norte e a Brigada Militar

Aspectos da Revolução Federalista (1893-1895)

Romeu Karnikowski
Romeu Karnikowski

A Revolução Federalista entre 1893 e 1895, foi o acontecimento bélico mais importante do sul do Brasil, que teve como cenário principal o Estado do Rio Grande do Sul. Efetivamente ela foi a guerra insurrecional que teve maior impacto, juntamente com a Revolta da Armada (1893/94) e a Guerra de Canudos (1896/97) na República Velha (1889-1930), pois as suas conseqüências perduram por muito tempo, indo além da Revolução de 1930. A Revolução Federalista, como bem observa o historiador Sérgio da Costa Franco, teve várias causas, sendo a principal a discórdia que se instalou depois da queda da Monarquia 1889, entre os dirigentes do novo regime, sobre o tipo de República deveria prevalecer: uma federalista com tipo de governo parlamentar ou uma mais centralizada, claramente de inspiração positivista, baseada no tipo de governo presidencialista. No Estado do Rio Grande do Sul, a segunda posição foi tomando forma mais definida em torno da liderança inconteste de Júlio de Castilhos (1860-1903), que montou uma azeitada máquina política e militar no Estado, através do Partido Republicano Rio-Grandense (PRR) e depois da Brigada Militar, criada em outubro de 1892, para ser o exército pretoriano do castilhismo. Os primeiros, no decorrer dos anos que se seguiram a queda da Monarquia, passaram a ser conhecidos como federalistas e os segundos de republicanos. Ambos os grupos se alternaram no poder do Estado gaúcho até o movimento de 17 de junho de 1892 – que os republicanos chamam de revolução – quando Júlio de Castilhos foi recarregado definitivamente ao poder, derrubando a junta que governou o Estado entre 12 de novembro de 1891 e até a data acima mencionada. Essa junta governativa, também chamado de governo provisório foi depreciativamente denominada pelo próprio Júlio de Castilhos de “Governicho”e era composta inicialmente por Assis Brasil, o general Barreto Leite, o general Manoel Rocha Osório e Barros Cassal. Os federalistas, liderados por Joca Tavares, irão resistir a derrubada da junta governativa em todo o Estado, donde começou os primeiros movimentos militares da Guerra Civil de 1893. Na verdade, os prenúncios da revolução estavam lançados com o retorno de Júlio de Castilhos ao poder que, porém, não o assumiu diretamente, mas o passou ao seu lugar tenente Vitorino Monteiro e depois a Fernando Abbott. O chefe republicano gaúcho recebia apoio integral e irrestrito do Presidente da República, marechal Floriano Peixoto, inclusive com ajuda militar, o que evidentemente ficou claro quando vários oficiais do exército assumiram postos de chefia da recém criada Brigada Militar, tais como o major Pantaleão Telles de Queiroz, comissionado como coronel, no comando geral da corporação, o capitão Fabrício Pillar, comissionado como tenente-coronel, no comando do 1º regimento de cavalaria e o capitão Cypriano da Costa Ferreira, comissionado como tenente-coronel no comando do 2º batalhão de infantaria, entre outros oficiais do exército. Os federalistas acusaram Júlio de Castilhos de despotismo e seu governo de ditatorial, ainda que ele não o exercesse diretamente, mas que ele tinha o controle absoluto da máquina pública do Estado. A situação tornou-se particularmente insustentável, quando na madrugada de 2 de novembro de 1892, uma tropa de uns quarenta soldados da recém criada Brigada Militar, com suas túnicas azul ferrete e calças brancas, armados de fuzis Comblain e liderada pelo próprio Pantaleão Telles de Queiroz, assaltou a residência de Facundo Tavares, irmão de Joca Tavares, matou os seus dois filhos e o levou preso à casa de correção junto a orla do Guaíba. No mesmo dia, o ex-deputado do Partido Liberal, Frederico Haensel, é também morto, supostamente por soldados da Brigada Militar que compunham a sua escolta. A guerra civil, com esses dois episódios, lançava os seus primeiros passos concretos, porque de fato o governo castilhista se mostrava claramente despótico e tirano aos olhos de todos os federalistas. Então o discurso passou a ser de libertar o Estado do Rio Grande do Sul da tirania de Júlio de Castilhos e por isso, os federalistas se denominaram também de libertadores. Assim, quando a 25 de janeiro de 1893, Júlio de Castilhos é empossado presidente do Estado, foi dada a condição fundamental para a declaração de guerra por parte dos federalistas, cujos movimentos bélicos começou em 2 de fevereiro quando uma coluna libertadora, cruzou a fronteira uruguaia para libertar o Rio Grande do Sul da tirania castilhista. Desde o início os republicanos castilhistas com o apoio do exército passaram a denominar os federalistas ou libertadores, pejorativamente de maragatos, em razão de alguns mercenários castelhanos, que faziam parte das tropas do general Joca Tavares, originários de uma localidade chamada Maragatia, na Espanha. No campo militar, o governo castilhista se preparou criando a Brigada Militar, por meio do Ato 357, de 15 de outubro de 1892, baixado por Fernando Abbott, tendo como modelo a organização do Exército Nacional. Na verdade, a criação da Brigada Militar resultou de um longo processo de militarização da força pública estadual. Demétrio Ribeiro noticiou no jornal O Rio Grande de 13 de outubro de 1891, que Júlio de Castilhos, então presidente do Estado, preparava, através de um profundo estudo, a criação de um “exército policial” que seria formado, segundo ele, de uma “brigada composta de dois corpos de infantaria e um de cavalaria e mais um piquete que funcionará junto presidente”. Essa brigada, segundo Demétrio Ribeiro, seria comandada pelo tenente-coronel Sebastião Bandeira, então comandante do regimento de cavalaria da famosa Brigada Policial do Rio de Janeiro. No entanto, Barros Cassal, do governo provisório, por meio do Ato 146, de 28 de março de 1892, criou o Corpo Policial do Estado formado por um regimento de cavalaria e um batalhão de infantaria, que mais tarde serviria de base para a composição dos corpos da Brigada Militar, que por sua vez tomou como modelo a organização do Exército Nacional. Esta força, na verdade, seria formada por três dimensões: a brigada efetiva ou regular composta inicialmente de um regimento de cavalaria e dois batalhões de infantaria que somaria 1.200 homens; os corpos de reserva, sendo em 10 e 11 de dezembro de 1892, criados os 1º e 2º batalhões de infantaria de reserva, respectivamente comandados pelos tenentes-coronéis Utalis Lupi e Dr. Alfredo Varela e, por fim, os corpos provisórios, criados pelo Ato 408, de 31 de dezembro de 1892. O tenente-coronel Utalis Lupi pereceu com todo o seu batalhão no combate do Rio Negro em novembro de 1893. Portanto, a Brigada Militar com esse formato poderia passar, em caso de guerra, de 1.200 para uma força formidável em torno de 5.000 homens, somando as unidades de reserva e os corpos provisórios. Mais tarde, em julho de 1893, já no desenrolar da revolução, é criado o 3º batalhão de infantaria. Quando a revolução eclode no início de fevereiro de 1893, Júlio de Castilhos já estava bastante preparado para o conflito bélico contra os federalistas com a criação da Brigada Militar e com o apoio do Presidente da República, Marechal Floriano Peixoto, com a participação de unidades do exército, mas a intensidade dos combates e o acirramento do conflito viu-se a necessidade de se criar novas unidades militares, pois os federalistas se mostraram inimigos formidáveis. A Divisão do Norte começou a se formar no final de março de 1893, nas plagas missioneiras de São Borja, por determinação do Senador José Gomes Pinheiro Machado nascido em Cruz Alta em 1851, e que se tornou um dos principais chefes republicanos no Rio Grande do Sul e no Brasil. Para tanto, ele reuniu em São Borja, o coronel honorário Manoel do Nascimento Vargas (pai do Presidente Getúlio Vargas) e o coronel Salvador Ayres Pinheiro Machado, seu irmão, que estava em São Luiz Gonzaga. O primeiro ficou encarregado de constituir uma brigada formada pelos 6º, 7º, 9º e 10º corpos provisórios comandados pelos tenentes-coronéis Ignácio Manoel da Fonseca, Hermelino Martins Coimbra, Accursio Corrêa de Sá e Manoel dos Santos Loureiro, que somou em torno de 800 homens, praticamente todos de São Borja. O segundo conseguiu reunir uma brigada inteira composta dos 1º, 2º, 3º, 4º e 5º corpos provisórios, respectivamente comandados pelos tenentes-coronéis Júlio Brum, José Adolpho Pithan, Irenêo Affonso de Queiroz e pelos majores Manoel Mamedes de Souza e José da Silva Tristeza, vulgo Deco, sendo ao todo mais de mil homens, a maioria de São Luiz Gonzaga. Com estas duas brigadas, o Senador Pinheiro Machado marchou no final de março na direção do rio Ibicuí, donde o próprio senador se dirigiu a cidade de Uruguaiana para convocar o general-de-brigada Francisco Rodrigues Lima, que comandava as guarnições estacionadas naquela cidade, para ser o comandante militar dessa força. Assim, no dia 2 de abril de 1893, no acampamento no Butuí, é criada a Divisão do Norte, formada inicialmente pelas 4ª e 5ª brigadas, tendo como comandante o general Rodrigues Lima. A Ordem do Dia nº 1, emitida nessa mesma data, anunciava a fundação da Divisão do Norte e fazia o inventario de sua organização: a 4ª brigada (São Luiz Gonzaga) que passava a ser composta dos 1º, 2º, 3º, 4º, 5º e 8º corpos provisórios da Guarda Nacional, tendo como comandante o coronel Salvador Pinheiro Machado e a 5ª brigada (São Borja) formada pelos 9º e 10º corpos provisórios da Brigada Militar e pelos 6º, 7º e 10º corpos provisórios da Guarda Nacional, além de uma bateria de três canhões sob a responsabilidade do coronel Aparício Mariense da Silva, comandada pelo coronel Manoel do Nascimento Vargas. Pela Ordem do Dia nº 3, de 3 de abril de 1893, o tenente do exército Ernesto Francisco Dornelles – tio do Presidente Getúlio Dornelles Vargas – é promovido ao posto de tenente-coronel em comissão e ao comando do 10º corpo provisório da Guarda Nacional, integrante da 5ª brigada. No dia 12 de abril, no Passo Novo do Ibicuí, por meio da Ordem do Dia nº 6, é criada a 6ª brigada, sob o comando do tenente-coronel Felipe Nery de Aguiar, de modo que esta, juntamente com as 4ª e 5ª brigadas, formariam o núcleo fundamental da Divisão do Norte. No dia 18 foi criada a 7ª sob o comando do coronel Arthur Oscar de Andrade Guimarães (que alguns anos depois comandou as forças governistas em Canudos) e no dia 22 de abril a 8ª brigada, sob o comando do coronel em comissão Constâncio Rodrigues, com tropas oriundas basicamente de São Francisco de Assis e do Povinho. Mais tarde foram criadas as 1ª, 2ª e 3ª brigadas completando a divisão que assim ficou constituída com 8 brigadas. Mais tarde, o 1º batalhão de infantaria da Brigada Militar irá fazer parte da 2ª e 3ª brigadas e o 1º regimento de cavalaria do tenente-coronel Fabrício Pillar da 2ª, sendo que este em maio de 1894 será nomeado temporariamente comandante da 1ª brigada que era comandada pelo major Antônio Tupy Caldas. O primeiro confronto bélico de envergadura da divisão foi o combate (batalha para Albino Coutinho) de Inhanduí, no município de Alegrete, em maio de 1893, quando as forças republicanas constituídas de uns 4.000 homens lutaram contra uns 6.000 federalistas (maragatos). Dias antes, o general Rodrigues Lima, atravessou o Ibicuí e fez a divisão avançar acelerado até o passo real do Inhanduí, onde deveria fazer junção com as forças do general Hypolito Ribeiro. Ali a vanguarda da divisão, sob as ordens do coronel Salvador Pinheiro Machado, em serviço de reconhecimento, engajou-se em tiroteio cerrado com piquetes de uma grande coluna federalista comandada pelo general Salgado. Durante o combate encarniçado a Divisão do Norte tomou posição ao centro e à direita, enquanto que as forças de Hypólito se firmaram na esquerda formando assim um pequeno arco, onde os soldados republicanos ficaram bem alojados e protegidos. Depois de um combate duro e renhido, a luta terminou indefinida com ambos os lados gritando vitória. Os federalistas se retiraram para se recompor e evitar maiores perdas de preciosos materiais bélicos. Júlio de Castilhos tratou de afirmar nos jornais de Porto Alegre e de Pelotas como uma grande vitória das forças republicanas. Afora a especulação política, a Divisão do Norte sagrou-se muito bem nesse combate considerado, pela sua envergadura, como o maior de toda a revolução. A partir do combate do Inhanduí, a Divisão do Norte, sempre sob as ordens do general Rodrigues Lima, perseguiu tenazmente as forças federalistas na direção do Rio Negro (Bagé), encontrando-se com o general João Telles (que no mês de dezembro de 1893, viria a morrer na Capital Federal, em decorrência de ferimento que recebeu ao atacar os rebeldes da Armada à frente da Brigada Policial do Rio de Janeiro) que avançava também no encalço dos inimigos. Esses dois generais ajustaram as operações de suas forças em toda a região, inclusive junto à fronteira com o Uruguai, depois, voltando-se para o oeste perseguiram a coluna do legendário coronel Gumercindo Saraiva até Itaqui, sempre com os federalistas dando combate sem esmorecer. Depois daí, a divisão rumou a Cruz Alta e a Passo Fundo, atravessando o rio Pelotas, embrenhou-se nos sertões de Santa Catarina em implacável perseguição aos federalistas. No início de dezembro de 1893, a divisão aproximou-se de Itajaí que estava bem fortificada com forças rebeldes, principalmente pelos marinheiros da Armada que desde setembro se revoltara contra o marechal Floriano Peixoto e se juntara à revolução, tendo aqueles desembarcados dos navios alguns canhões-revólveres de 37 mm. O general Rodrigues Lima organizou a divisão para o ataque que seria feito quase pelo duplo flanqueamento (tática imortalizada pelo cartaginês Anibal em 216 a. C., na batalha de Cannes onde derrotou os romanos atacando-os pelos flancos), de forma que as forças rebeldes foram desalojadas de Itajaí com perdas mínimas para os republicanos. Foram imensos os sacrifícios da divisão em território catarinense. A divisão estava maltrapilha, toda esfarrapada, praticamente descalça, marchando em verdadeira penúria, tão somente os fuzis a mostra. O Senador Pinheiro Machado descreve a receptividade dos colonos que recebiam os soldados da divisão com euforia apesar do seu aspecto lamentável. Os soldados da Divisão do Norte avançavam semi-nus e quando entraram na próspera Blumenau, muitos homens da cidade entregaram suas próprias camisas a eles, certamente apiedados da sua condição de miserabilidade. A população, na maioria de origem germânica, entregava toucinho, carne, manteiga, água e pão para servir de alimento aos soldados. A certa altura a divisão começou a marchar para o sul, em movimento de retorno ao Estado onde ela foi criada. O mês de janeiro de 1894 começou muito chuvoso, o que dificultava ainda mais a marcha da divisão. Passando por Lages, a divisão acampou junto ao rio Caveiras que estava muito cheio devido às persistentes chuvas. Nesse local, aconteceu um dos fatos mais impressionantes da divisão: o fuzilamento do capitão Adão Cardoso, um dos mais valentes soldados da divisão, no final da manhã do dia 25 de janeiro. Denunciado pelo coronel José Adolpho Pithan, comandante da 6ª brigada, na qual Cardoso pertencia, por atos de extrema violência contra civis indefesos, foi levado a Conselho de Guerra, formado pelo coronel presidente Antonio Adolpho da Fontoura Menna Barreto, pelo tenente-coronel interrogante Fabrício de Oliveira Pillar, tenente-coronel vogal Carlos Frederico de Mesquita, tenente-coronel vogal Antonio Pimenta do Carmo, major vogal Bráulio de Oliveira, major vogal Luiz Gonçalves Pinheiro e o capitão vogal Jayme da Silva Telles que depois de julgá-lo, o condenou a morte no dia 23 de janeiro, sendo o parecer da terrível sentença apresentado ao general Rodrigues Lima. A execução foi marcada para o dia 25 de janeiro. A narrativa dos acontecimentos em torno dessa execução na Ordem do Dia nº 73, é deveras arrepiante. Na manhã nublada do dia 25, toda a divisão se dispôs no alto da colina em formatura de frente para o acampamento junto ao rio Caveiras, com as 1ª e 2ª brigadas posicionadas no centro, as 3ª e 4ª brigadas à esquerda e as 5ª e 6ª brigadas à direita. As 7ª e a 8ª estavam operando em outro cenário da guerra. A 6ª brigada nomeou – por ordem do general Rodrigues Lima – uma guarda composta de um oficial e 20 soldados, dentre os quais seriam escolhidos quatro para efetuar a execução observando as formalidades militares. O silêncio era aterrador verdadeiramente sepulcral, não se ouvia nada, exceto o murmúrio pesado do rio caudaloso e não se via nenhum movimento da tropa, salvo dos lenços, das pontas dos uniformes e dos chapéus esvoaçarem brandamente ao leve vento que soprava. A divisão parecia um bloco de pedra, imóvel ao relampejar das armas. O valente capitão Adão Cardoso – oriundo da Palmeira – bravo em todas as lutas, irmão de armas, seria ali diante de toda divisão executado, o que cada soldado custava a entender. Então pouco depois das 10 horas da manhã, o bravo capitão Cardoso é conduzido, pela referida escolta, ao centro da formatura das seis brigadas da divisão, onde foi lida a ordem do dia pelo ajudante do general Rodrigues Lima postado na frente de todas as brigadas. Então o réu, em uma última tentativa de salvar-se pediu uma audiência com o general, o que foi prontamente aceito. Cardoso recordou ao comandante das quantas lutas e pelejas em que sagraram-se vencedores ao que Lima respondeu-lhe que tinha ciência do seu valor militar, mas que não poderia alterar a sentença. Diante disso, o bravo capitão retornou ao lugar da execução acompanhado pelo comandante da referida guarda. Os soldados desataram-lhe os braços, voltando-se para toda a divisão tirou o chapéu e gritou “vivas à República”. Em movimentos quase eternos emoldurados pelas nuvens carregadas e cinzentas daquela triste manhã, o capitão recolocou o chapéu e desceu as abas sobre os olhos, alguns segundos depois ele é fuzilado por quatro soldados da 6ª brigada. Terminado a execução, toda a tropa desfilou ao lado do cadáver por ordem de numeração das brigadas, dentro da mais rigorosa cadência, ao som dos clarins e das marchas de guerra tocadas pelas bandas dos corpos da divisão e dos relâmpagos, trovões e o agitar das árvores que começavam a riscar o céu e a tremer a terra sob um vento quase gélido de morte. A música marcial misturado ao passo cadenciado dos soldados que marchavam ao lado do cadáver do capitão executado, formava um espetáculo terrível e ameaçador. O resto tudo era vento, trovões, relâmpagos e farfalhar das árvores e ao longe silêncio. Algum tempo depois a Divisão do Norte conseguiu, ainda sob chuva caudalosa, retornar ao solo rio-grandense, encetando tenaz perseguição as colunas federalistas do legendário Gumercindo Saraiva e do general Salgado que depois do cerco e tomada da cidade da Lapa, no Paraná, também retornavam ao Rio Grande. Nessa perseguição, é importante destacar o episódio de 5 de abril de 1894, quando a coluna federalista do coronel Ubaldino Demétrio Machado, que ganhara notoriedade por ter tomado e mantido a cidade de Santo Ângelo, avançava  das Missões, acampou tranquilamente na localidade de Boi Preto perto de Palmeira. O coronel Firmino de Paula, a testa da 5ª brigada da Divisão do Norte, sabedor desse fato, adiantou para combater a coluna de Ubaldino, pois este poderia fustigar a retaguarda da divisão. Nesse ínterim, o coronel Ubaldino foi à frente com piquete para ele próprio realizar reconhecimento deixando o grosso das suas tropas acampadas em Boi Preto. No entanto, antes de raiar o sol, as tropas da 5ª brigada que formava a vanguarda da Divisão do Norte cercaram e surpreenderam os soldados maragatos que dormiam serenamente, destroçando assim praticamente toda a coluna de Ubaldino, matando em torno de 400 soldados federalistas. O coronel Firmino de Paula que ficaria famoso por sua ferocidade, em vingança ao que aconteceu no Rio Negro (Bagé) em novembro de 1893, mandou degolar os prisioneiros, uma parte no local do massacre e os demais durante a sua marcha para o sudoeste. Desse modo, já em território rio-grandense, depois de vários meses de combates e lutas sem trégua, a vanguarda da divisão engajou luta contra parte da coluna de Gumercindo Saraiva, sendo este ferido mortalmente no combate de Carovi, no dia 10 de agosto de 1894. Assim, os federalistas perderam o seu mais talentoso e genial chefe militar – uma espécie de Stonewall Jackson, brilhante general confederado na Guerra da Secessão, morto em maio de 1863 – que tanto trabalho e baixas causou à Divisão do Norte. Mas algumas semanas depois, o incansável e temido tenente-coronel Fabrício Pillar, também viria a tombar no combate de Capão das Laranjeiras, no dia 6 de setembro de 1894. Assim, a Divisão do Norte, repentinamente, se viu privada de um dos seus mais brilhantes, valentes e importantes oficiais. Fabrício Baptista de Oliveira Pillar, nasceu no dia 24 de agosto de 1856, em São Vicente do Sul, fazendo, desde jovem, carreira brilhante na arma de cavalaria do exército, destacando-se por seu destemor e coragem inigualáveis. O governo castilhista de Fernando Abbott, ao criar o regimento de cavalaria da Brigada Militar, em 10 de novembro de 1892, necessitava urgente de um oficial do exército para comandar essa unidade. Desse modo, o capitão Fabrício Pillar foi comissionado no posto de tenente-coronel para comandar essa nova unidade da recém criada Brigada Militar, cujos nomes viriam a se tornar legendários como integrantes da Divisão do Norte, que cresceu com a morte do tenente-coronel Pillar aos 38 anos de idade no combate de Capão das Laranjeiras. Ele foi promovido post mortem ao posto de major do exército e alguns anos depois a Patrono do 1º Regimento de Cavalaria da Brigada Militar do qual foi o primeiro e mais notável comandante. A partir da morte de Pillar, a divisão entrou muitas vezes em combate contra as já cansadas forças federalistas que, no entanto, continuavam a lutar muito bravamente, conseguindo conquistar ainda algumas vitórias surpreendentes. O eminente Albino Coutinho narra no seu livro impar Marcha da Divisão do Norte, a saga da legendária divisão que se constituiu na principal força militar do regime castilhista na dura luta contra os federalistas. Durante a revolução foram criadas outras divisões: a Divisão do Sul sob o comando do coronel João Cesar Sampaio; a Divisão do Oeste do general Hypolito Ribeiro, cujo feito principal foi no combate de Sarandy (Livramento) em 28 de fevereiro de 1894; a Divisão dos Trilhos primeiramente comandada pelo coronel Henrique Guatemosim Ferreira da Silva e depois pelo coronel Thomas Thompson Flores e tinha a missão de proteger a malha ferroviária do Estado e a Divisão de Porto Alegre que foi a menos famosa delas porque atuou poucas vezes na frente de luta. Outro aspecto importante é o legado militar da Revolução Federalista, principalmente no aspecto da experiência dos oficiais e soldados como ficou claro nas expedições para sufocar a revolta de Canudos que teve muitos problemas para as forças militares do governo, mas não quanto a valentia dos soldados. A Guerra de Canudos foi acompanhada com grande espanto e apreensão pela sociedade brasileira no final do século XIX, pela tenacidade dos sertanejos e principalmente pelas derrotas e incomensuráveis baixas do Exército brasileiro desnudando-lhes as suas enormes deficiências, que no longo prazo trouxe mudanças na formação e treinamento do mesmo, inclusive fechando a velha Escola do Brasil da Praia Vermelha, a berçaria de oficiais do exército, em razão de algumas rebeliões dos alunos, destacadamente a de 1904, transferindo algum tempo depois para o Realengo. A maior parte dos oficiais governistas – e também soldados – que atuaram na Revolução Federalista na defesa da legalidade, portanto, de Júlio de Castilhos e do Marechal Floriano Peixoto – respectivamente presidentes do Rio Grande do Sul e do Brasil – foram protagonistas na Guerra de Canudos. Euclides da Cunha a certa altura da sua obra Os Sertões realiza o inventário das unidades e oficiais que participaram das expedições ao arraial dos sertanejos comandados por Antônio Conselheiro, destacando os batalhões – 12º, 25º, 30º, 31º e 32º – e oficiais que atuaram intensamente na Revolução Federalista. Dentre esses oficiais está o coronel Moreira César – que em abril de 1894 assumiu o governo catarinense iniciando um regime de terror mandando executar dezenas de homens ilustres daquele Estado – no comando da brigada de 1.200 soldados que efetuou a terceira expedição a Canudos – mais adiante os coronéis Thomaz Thompson Flores – que comandou a Divisão dos Trilhos encarregada da segurança das estradas de ferro durante a revolução – no comando do 7º batalhão de infantaria e que tombou em Canudos; o coronel Carlos Telles – que comandou a guarnição sitiada em Bagé pelas tropas federalistas do general Joca Tavares – no comando da 4ª brigada; o coronel Julião Augusto de Serra Martins no comando da 5ª brigada; o coronel Donaciano de Araújo Pantoja – que participou do combate do Rio Negro em novembro de 1893 com o 28º batalhão de infantaria – no comando da 6ª brigada; o coronel Antônio Tupy Ferreira Caldas que comandou a 1ª brigada da Divisão do Norte que lutou com distinção no ataque a Itajaí e também morreu em Canudos, além dos generais Cláudio Savaget e Arthur Oscar entre outros oficiais. Pode-se afirmar que o exército nacional forjou o seu oficialato, que participou da Guerra de Canudos, nos combates e pelejas da Revolução Federalista. Os principais oficiais que comandaram ou fizeram parte das expedições a Canudos, eram oriundos da Divisão do Norte. Ela foi mais do que a principal força bélica que sustentou e manteve os regimes de Floriano Peixoto e de Júlio de Castilhos no país, durante a Revolução Federalista e a própria revolta da Armada, foi grupamento mais insigne e notável de homens extraordinários que devem ser lembrados e enaltecidos na história do Rio Grande do Sul e do Brasil, a começar pelo próprio general-de-brigada Francisco Rodrigues Lima, comandante eterno da Divisão do Norte, filho de São Borja, terra mística e extraordinária; o Senador José Gomes Pinheiro Machado que juntamente com Júlio de Castilhos era o principal dirigente republicano no Estado e era uma espécie de chefe político da Divisão do Norte e o que lançou as bases da sua criação em São Borja; o coronel Salvador Ayres Pinheiro Machado, irmão do senador e um dos mais notáveis chefes da divisão e seria comandante geral da Brigada Militar entre 1896 e 97; o coronel Manoel do Nascimento Vargas – pai do Presidente Getúlio Vargas – e que se notabilizou pela sua imensa capacidade de administrar a divisão; o legendário e temido tenente-coronel Fabrício Baptista de Oliveira Pillar, comandante do 1º regimento de cavalaria da Brigada Militar, um dos mais célebres chefes da divisão; o major Antonio Tupy Ferreira Caldas que se distinguiu no comando da 1ª brigada; o coronel Thomas Thompson Flores que se destacou como um dos mais notáveis oficiais da divisão; o coronel Firmino de Paula e Silva que ficou famoso por sua ferocidade, mas não menos bravo; o coronel Santos Filho que igualmente se distinguiu por sua ferocidade e tenacidade com que perseguiu os federalistas; o coronel Antônio da Fontoura Menna Barreto, descendente de uma das mais – senão a mais –  ilustre família de militares gaúchos, juntamente com a família Telles, além dos coronéis Adolpho Pithan, Júlio de Brum, Aparício Mariense, Carlos Frederico de Mesquita, Ernesto Dornelles, Antônio Pimenta do Carmo e tantos outros oficiais dentre os mais notáveis e capazes da então jovem República do Brasil, sem falar da qualidade de disciplina e de bravura dos soldados da divisão. Essa é em linhas gerais, a saga da longa marcha da Divisão do Norte, que tornou-se um dos mais importantes corpos militares da história do Brasil, dentro da qual as principais unidades da Brigada Militar lutaram durante a Guerra Civil de 1893. Embora os resultados da Revolução Federalista (1893/95) e, principalmente, da Guerra de Canudos (1896/97), tenham deixado o exército brasileiro em verdadeiro estado de penúria e lamentável situação – praticamente destruindo todo o prestígio político e social que ele havia conquistado depois da Guerra do Paraguai entre 1865 e 1870 – as referências e lições deixadas pela Divisão do Norte deveriam ser apreendidas, o que lamentavelmente não o foi por incompetência política das oligarquias que dominavam o Brasil, somente assim, o exército poderia reconquistar a sua posição de poder moderador tal como fora depois da Guerra do Paraguai e que só reapareceria depois da Revolução de 1930. As profundas deficiências do Exército Nacional apareceram em toda a sua nitidez na Guerra do Contestado (1912-1916), a despeito de algumas reformas perpetradas pelo Presidente Hermes da Fonseca. Muitos dos elementos que sagraram vitoriosos na Revolução de Outubro – 1930 – já estavam contidos na saga da Divisão do Norte. A marcha da divisão arrostando as colunas federalistas, nos três estados do sul, já demonstrava os sinais da degradação e das deficiências de material, de formação e de treinamento do Exército Nacional que as expedições a Canudos simplesmente trataram de escancarar. Na verdade, a Divisão do Norte manteve-se intacta, durante longo tempo, graças a competência administrativa e de liderança dos seus comandantes e a incrível bravura dos seus soldados que suportavam tudo estoicamente, diante de um inimigo valoroso e capaz como se demonstraram os federalistas (maragatos), mas os sinais de que as coisas não iam bem no exército já estavam dados o que foi velado pela heróica campanha da divisão. A própria bravura da divisão ocultou os defeitos e deficiências do exército, e talvez essa seja a grande lição da Divisão do Norte, que lamentavelmente não foi percebida pelos políticos encastelados no Rio de Janeiro, então Capital Federal.

 

BIBLIOGRAFIA

 

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PORTO, José da Costa. Pinheiro Machado e seu Tempo. 2ª Ed. Porto Alegre: L&PM, 1985.

 Romeu Karnikowski

Pesquisador PNPD da PUC/RS