Um estudo realizado com cerca de 21 mil policiais em todo o Brasil revelou que quase 30% deles já foram vítima de abusos físicos ou morais em suas instituições – parte deles, durante o treinamento policial.
Segundo especialistas ouvidos pela BBC Brasil, a violência dentro das instituições policiais colabora para que os agentes da lei reproduzam esses abusos contra setores menos favorecidos da sociedade.
O levantamento, Opinião dos Policiais Brasileiros sobre Reformas e Modernização da Segurança Pública, foi feito por pesquisadores do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e da Secretaria Nacional de Segurança Pública entre junho e julho deste ano por meio de um questionário eletrônico.
Segundo o documento, 28% dos policiais pesquisados disseram ter sido “vítima de tortura em treinamento ou fora dele” e 60% afirmaram ter sido desrespeitados ou humilhados por superiores hierárquicos.
“Se o policial sofre com a violência internamente, ele vai reproduzi-la na sociedade”, afirmou Rafael Alcadipani, especialista em estudos organizacionais da FGV.
Ele disse que é preciso entender essa cifra em um contexto policial que muitas vezes preza a violência na formação de seus agentes.
“Você precisa de alguns grupos específicos de policiais mais duros para lidar com conflitos, mas a maior parte do policiamento não vai lidar com essa realidade, eles vão lidar com desentendimentos entre vizinhos e brigas de casais, por exemplo.”
Segundo a pesquisadora Camila Nunes Dias, da Universidade Federal do ABC e associada ao Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP), as humilhações praticadas por superiores contra policiais podem influenciar a forma com que esses agentes lidam especialmente com as camadas menos favorecidas da sociedade.
“A violência policial não acontece só entre policiais e a sociedade civil, ela é frequente dentro da própria corporação.”
“Se policiais são alvo de humilhação espera-se que alguns desses indivíduos queiram reproduzir isso com as pessoas com as quais eles lidam, sobretudo as mais vulneráveis socioeconomicamente e os egressos do sistema prisional.”
Treinamento duro
O relato de abusos por todo esse contingente de policiais pode estar relacionado a treinamentos precários, mas também à falta de entendimento da profissão por parte dos policiais.
Esse é o ponto de vista do coronel José Vicente da Silva Filho, ex-secretário Nacional de Segurança Pública, professor do Centro de Altos Estudos de Segurança da PM de São Paulo e membro do fórum organizador do estudo.
Segundo ele, as escolas policiais do mundo todo adotam um ritmo intenso e bastante militarizado no processo de treinamento, no qual alguns exercícios podem até ser interpretados como abusos ou tortura.
Entre eles estão especialmente a imposição de exercícios físicos extenuantes e a privação de sono ou alimentação por períodos prolongados.
“Não há outra forma de lidar com tensão senão senti-la. Se o nível de estresse não for trabalhado, pode afetar as decisões do policial”, afirmou.
“A polícia não é igual às Forças Armadas, mas as situações de estresse são tão frequentes quanto as das Forças Armadas.”
Ressentimento
Para José Vicente da Silva, interpretar certas atividades intensas como abuso por decorrer de um desentendimento, fruto de uma deficiência no processo de ensino ou de compreensão do policial sobre sua própria carreira.
Ele geraria uma série de policiais ressentidos, cujo trabalho com a sociedade também seria comprometido.
Porém, também pode ser resultado de escolas de formação de baixa qualidade, onde instrutores pouco preparados impõem situações de abuso que podem até colocar em risco a integridade dos novos policiais.
Isso tenderia a acontecer principalmente em Estados onde há um volume maior de treinamento de policiais.
José Vicente Silva Filho afirmou que de fato nesses casos os abusos podem ser reproduzidos no tratamento da sociedade. Porém, segundo ele, os abusos policiais não podem ser explicados apenas por problemas de formação.
Eles estão relacionados às condições de trabalho dos policiais, que envolvem baixos salários, altas jornadas e apoio médico e psicológico deficitário.
Desmilitarização
O estudo também constatou que a maior parte dos agentes da lei entrevistados gostaria que a atividade policial fosse organizada em uma carreira única, integrada e de natureza civil.
Segundo os dados, 27% são favoráveis a uma nova polícia de caráter civil, que faça patrulhamento de ostensivo de rua e investigação. Outros 21% querem a união das polícias militar e civil em uma instituição civil.
Apenas 14% dos pesquisados disseram preferir a manutenção da estrutura atual, na qual a Polícia Militar patrulha e a Civil investiga.
Segundo Alcadipani, essa porcentagem é resultado do fato de que a maior parcela dos entrevistados era composta de policiais de nível hierárquico mais baixo. Eles estariam descontentes com o alto nível de controle de sua atividade por níveis hierárquicos mais altos.
De acordo com Alcadipani, por vezes a questão da desmilitarização é vista pela opinião pública como sinônimo de uma polícia mais aberta e mais comunitária – fatores que são essenciais, mas não estariam relacionados a uma hierarquia militar, necessária, segundo ele.
Para Dias, a discussão sobre a desmilitarização ou não da polícia diz respeito somente à eficácia da instituição. Segundo ela, antes de entrar nesse debate é preciso reduzir os casos de violência, arbitrariedade e corrupção da polícia.
“É difícil debater modelos de eficácia quando ainda temos esquadrões de extermínio integrados por policiais.”
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