Foram dois dias que já entraram para a história da Assembleia Legislativa. Começando com um bloqueio total do acesso de deputados ao Parlamento e culminando com a aprovação, a portas fechadas, de oito projetos sem a presença da oposição. A partir do mais importante deles, foi criada oficialmente a previdência complementar para os servidores públicos de todos os poderes do Estado.
Ato I: Bloqueio
Eram 6h30 de terça-feira (15) quando milhares de servidores, aproveitando do dia de greve geral, começaram a chegar à Praça da Matriz e a se deslocar para todas as entradas da Assembleia Legislativa. O objetivo: pressionar os deputados a negociar a retirada do pedido de urgência de três dos dez projetos da pauta do dia, o PL que cria a previdência complementar, limitando as aposentadorias do serviço público ao teto do INSS, e os PLs que propõem a extinção da Fundação Estadual de Produção e Pesquisa em Saúde (Fepps) e da Fundação de Esporte e Lazer do Estado do Rio Grande do Sul (Fundergs).
Com todos os acessos ao Parlamento trancados, à medida que os deputados foram chegando, eles iam se reunindo em pequenos grupos do lado de fora da AL, conversando entre si, com os manifestantes ou com a imprensa. Coube ao presidente do parlamento gaúcho, Edson Brum (PMDB), negociar com representantes do movimento unificado, que representa todas as categorias do funcionalismo do Executivo estadual. Após algumas horas de impasse, por volta das 10h30, Brum anuncia que chegou a um acordo com líderes sindicais para a realização de uma reunião às 11h30.
“Nós vamos receber, conforme acordo, às 11h30, o movimento com os parlamentares na sala da presidência”, anuncia Brum. Questionado sobre se o bloqueio continuaria, Brum responde: “Tranquilo, pessoal se manifestando pacificamente”.
Contudo, os primeiros momentos de tensão do dia começaram quando Brum tentou se retirar da esplanada da Assembleia, onde estava desde cedo. Cercado por manifestantes, que aos berros exigiam a retirada da urgência sobre os projetos, Brum chegou a ficar encurralado. Em diversas oportunidades, servidores e seguranças trocaram empurrões.
“Se o governo tensionar, vai ter tensão”, justifica Isaac Ortiz, presidente do Sindicato dos Escrivães, Inspetores e Investigadores da Policia Civil do RS (Ugeirm). “Tem que tirar o 62 (regime de urgência), tem que tirar esse tensionamento. Essa previdência é para daqui a 40 anos, não é para agora. Quase aconteceu uma tragédia aqui hoje. O governo tem que pensar e refletir sobre isso”, complementa.
O tumulto, que, segundo os sindicalistas, foi provocado pelos seguranças, só arrefeceu quando Brum e outros deputados foram escoltados para uma entrada lateral do Memorial do Legislativo, a chamada Casa Rosada.
Ato II: A reunião
Apesar do tumulto, a reunião de fato começou logo após as 11h30, com a presença das principais lideranças do movimento unificado e de mais de 20 deputados, incluindo representantes da situação e da oposição.
Um a um, os sindicalistas expuseram aos deputados a importância da retirada do regime de urgência sobre os três projetos e estabeleceram as condições para a liberação da AL, pedindo para que líderes de bancadas se dirigissem ao Palácio Piratini para tentar convencer o governo a retirar a urgência sobre os projetos – os deputados alegaram que não tinham autoridade para isso.
Enquanto a oposição defendia que Brum aceitasse a reivindicação de ir até o governo, deputados do PP, PDT e PMDB pediram a liberação da AL para que pudessem deliberar sobre a retirada da urgência dos projetos previstos para serem votados na Casa. Líder do PMDB, o deputado Alexandre Postal, disse que não havia como seu partido tomar nenhuma decisão com o Parlamento fechado.
Em meio a argumentação, deputados se indignaram quando líderes de entidades que representam policiais civis e militares alertaram que os projetos de ajuste do governo Sartori criaram uma situação de “barril de pólvora” e que, diante de uma negativa por parte dos deputados, não poderiam garantir o controle de suas bases e a segurança dos parlamentares. “Isso é uma ameaça”, reagiu um deputado.
Por volta das 13h, Brum propõe a reabertura da AL para a reunião de bancadas e depois se compromete a liderar uma caminhada até o Piratini para conversar com o governador José Ivo Sartori. Ele então dá 15 minutos aos líderes sindicais para convencer suas categorias a desbloquear totalmente o Parlamento. “Qual foi a proposta: nós abrimos a Assembleia, as bancadas vão para lá discutir e depois a gente leva a reivindicação deles ao governador. Eu me propus a pessoalmente fazer isso junto com os líderes que quiserem me acompanhar. Dialogando ao extremo”, diz Brum.
Os 15 minutos logo viram uma hora e a impaciência dos deputados aumenta. Eles demonstram indignação com o bloqueio. “Nunca aconteceu em 180 anos de AL”, diz um parlamentar.
Isolado na Casa Rosada com parlamentares, assessores e a imprensa, Brum mantém que só atenderá a reivindicação dos sindicalistas com liberação total do acesso. “Eu só vou colocar o que os sindicalistas pediram se liberar o Parlamento totalmente, não é uma portinha. É desrespeito fechar um Parlamento de 180 anos que nunca esteve fechado”.
O presidente da AL chega, inclusive, a cogitar a possibilidade de convocação da votação marcada para a mesma tarde para a própria Casa Rosada, possibilidade aberta por se tratar de um prédio pertencente ao Legislativo gaúcho. Contudo, descarta pedir apoio da Brigada Militar, o que vinha sendo difundido em rádios da capital. “Espero não pedir. Espero que tenhamos a compreensão dos sindicatos, porque nós estamos dialogando desde a manhã com eles, espero que cedam um pouquinho”.
Ato III: O acordo
Já passava das 14 h – horário marcado para o início da votação do dia -, quando os líderes sindicais retornaram à Casa Rosada. Nesse momento, o líder da bancada do PP, Frederico Antunes, já anunciava que seu partido e outros cinco defendiam a suspensão da votação e retomada apenas na próxima terça.
As lideranças sindicais aceitam o acordo proposto por Brum e o presidente da AL tenta então se dirigir ao Parlamento. Mais uma vez em meio à multidão, ele volta a ser repudiado pelos servidores. Do caminhão de som dos servidores, que orientou o movimento a se manifestar pacificamente desde o início da manhã, vem o anúncio do acordo e o pedido para que as pessoas se retirem da esplanada. Enquanto a maioria responde e deixa o local, grupos permanecem irredutíveis em cada uma das entradas. Sindicalistas tentam dialogar com os seus pares, mas eles são irredutíveis: ou a retirada da urgência no ato ou nada. “Quem garante que eles não vão votar e aprovar hoje se a gente sair daqui?”, reage uma servidora no acesso principal da AL.
Brum ainda faria uma segunda tentativa para entrar na Casa e novamente não conseguiria. Diante da situação, cancela a votação do dia alegando falta de segurança.
Neste momento, a data para a nova votação era incerta. “A pauta desta semana está encerrada pela minha experiência de seis mandatos”, projeta o líder do PTB na Assembleia, Aloisio Classmann, apoiando o movimento dos servidores. “O governo não pode pegar o funcionalismo para pagar o mico”.
A ideia dos sindicalistas, porém, era manter a pressão no dia seguinte. “Vamos continuar mobilizados amanhã (quarta), ver se não vai sair nenhuma votação”, adianta Ortiz, da Ugeirm, ainda que lamentasse o descumprimento do acordo fechado com os parlamentares. “Não fomos nós que não cumprimos”, argumentou sobre o pequeno grupo que barrou Brum na entrada do Legislativo.
Ato IV: O sítio da BM
Se a terça amanheceu com forte sol e com a entrada da AL tomada de gente, a quarta iniciou com chuva intensa e o local totalmente isolado. Respondendo a um ofício encaminhado por Brum, a BM postou mais de 200 agentes do Pelotão de Operações Especiais (POE) – superando em número os manifestantes no início da manhã – e montou barreiras de contenção bloqueando os acessos ao prédio pela rua Duque de Caxias e pela Praça da Matriz, onde permanecia montado um acampamento do movimento unificado.
Por um lado, os servidores condenavam o aparato policial mobilizado em frente à AL. “A gente lamenta também esse cerco em que os servidores foram colocados. Estamos em uma praça de guerra, sendo tratados como pessoas fora da lei”, disse Fábio Castro, vice-presidente da Ugeirm.
Por outro, reconheciam que parte dos servidores foi irresponsável ao descumprir o acordo no dia anterior. “Nós temos ali pessoas que eram da direção anterior, que ainda não aceitaram a derrota e não sabem fazer a disputa no espaço que deveriam. Se equivocaram totalmente. Estão atrapalhando todo um processo que envolve mais servidores, não somente o Cpers, e trazem as pequenas rixas e as picuinhas para uma luta que é séria”, afirma Helenir Schurer, presidente do Centro dos Professores do RS (Cpers).
Ao mesmo tempo, tendo entrado tranquilamente no Parlamento, líderes de bancadas da base e da oposição faziam uma reunião informal com o presidente da Assembleia. “O pessoal foi chegando com o chimarrão e conversando”, diz Brum. Apesar de não ser definitivo, ele informa que a sessão solene marcada para a tarde, que homenagearia a Semana Farroupilha, havia sido cancelada e em seu lugar seria realizada uma sessão extraordinária.
A tendência de retomar a votação cancelada no dia anterior crescia. “Pela manifestação dos líderes nas conversas informais, eles vão pedir para que a votação aconteça hoje”, complementa, acrescentando que a definição sairia em reunião de líderes marcada para as 13 h.
Contudo, sobre uma coisa Brum foi definitivo: a sessão não seria aberta ao público, apenas a deputados, assessores e a jornalistas. “Está decidido, por tudo que aconteceu ontem, especialmente porque os líderes dos movimentos perderam o controle de seus associados. Fizeram o acordo e não conseguiram cumprir”, diz.
Questionado se não estava se criando um estado de exceção, Brum responde: “Quem não deixou a população entrar, e mais grave, os parlamentares e os servidores públicos, foram os servidores. Nosso intuito foi de conversar e dialogar para não transformar a Praça da Matriz, como aconteceu há anos atrás, quando o PM Valdeci foi degolado em uma manifestação”, disse o presidente da AL, referindo-se à morte do policial militar Valdeci de Abreu Lopes, em 8 de agosto de 1990.
Além disso, lembra que, em outras oportunidades, como nos governos de Antonio Britto (PMDB) e Olívio Dutra (PT), votações já tinham sido realizadas a portas fechadas, inclusive no Plenarinho.
Presente no encontro informal, a deputada Miriam Marroni (PT), reconhece a tendência de votação na quarta e, apesar de elogiar a condução de Brum no dia anterior, critica a decisão de realizar a sessão sem populares no plenário. “O fato de ontem ter sido tumultuado, bom, nós precisamos compreender. As pessoas não estão conseguindo pagar as contas, estão recebendo salário parcelado, tem ameaça de perder carreira. Vamos nos colocar no lugar dessas pessoas. Obviamente que não justifica agressões”, diz a deputada.
Ato V: Retomada das negociações
Em uma tentativa de retomar o diálogo, Brum se reúne, na Casa Rosada, com lideranças sindicais que desejam recomeçar as negociações com parlamentares após o meio-dia de quarta. Sindicalistas reafirmam que não tiveram culpa por quebra de acordo e Brum reconhece a postura das lideranças do movimento unificado.
Brum comunica aos servidores que há grande possibilidade de votação na quarta e anuncia que a sessão será fechada. Por outro lado, diz que irá cumprir o combinado no dia anterior e levar a reivindicação do movimento de retirar a urgência ao governador.
Diretamente a Brum, sindicalistas não questionam a decisão de a sessão ser realizada sem presença de público. “Achamos que é uma atitude bastante antidemocrática, estamos inconformados com isso. Porém, nós queríamos a ampliação do diálogo, e foi isso que nós viemos pedir aqui”, diz Sérgio Arnoud, presidente da Federação Sindical dos Servidores Públicos do Estado do RS (Fessergs).
Ao contrário do dia anterior, Brum estava mais relaxado. Ao retornar ao Parlamento, encontrou o deputado Jardel na fila do elevador. Deu-se ao luxo de trocar brincadeiras com o ex-centroavante, que lhe mostrou reverência. “O senhor é quem manda”, disse a Brum antes de ambos embarcarem rumo ao encontro dos demais líderes de bancadas.
Ato VI: Encontro com Sartori
Marcada para as 13 h, a reunião de líderes rapidamente confirma o que já era esperado: a votação estava em pé. Acompanhado pelos deputados Eduardo Loureiro (PDT), Sérgio Peres (PTB) e Missionário Volnei (PR), Brum vai ao Piratini, onde é recebido pelo governador Sartori, e expõe pedido dos servidores pela retirada do regime de urgência. Ao deixar o encontro, anuncia que cumpriu sua parte no acordo.
Na sequência, o governador anuncia que recebeu a reivindicação, mas que não iria retirar o regime de urgência. E justifica: “Quando foi proposto em outras oportunidades essa mesma legislação, também foi pedido o 62 [regime de urgência], foi retirado e nunca mais foi votado”, disse o governador.
Ela ainda afirma que a Assembleia Legislativa foi “ultrajada” no dia anterior. “Depois do que ocorreu no dia de ontem, se eu tomasse outra atitude que não fosse essa, eu estaria também afrontando o parlamento como ele foi afrontado. A nossa obrigação é de prestigiar o poder legislativo. Nós infelizmente adotamos uma medida de não retirarmos o regime de urgência”, disse.
Ato VII: A aprovação
Sem muitos atrasos, a sessão extraordinária de quarta-feira inicia pouco depois das 14 h. Na abertura da sessão, líderes do PT, PSOL e PCdoB fazem pronunciamento criticando a decisão de realizar a votação com o plenário fechado. As duas primeiras bancadas decidem se retirar.
“Não pode haver decisão dentro do parlamento sem a presença dos interessados. Não há razão nenhuma que justifique que se vote uma matéria tirando a possibilidade do apoio e da contestação da sociedade como um todo e, particularmente, daqueles que serão atingidos por esta medida”, diz Luiz Fernando Mainardi, líder do PT. “A Assembleia está sitiada pela Brigada Militar num dia em que se vota uma matéria muito importante que é a previdência complementar”.
Pedro Ruas (PSOL) considera a votação “ilegítima”. “Mesmo que essa votação possa ser regimentalmente legal, ao não permitir que o povo do RS, particularmente os servidores, participe, ela perde a legitimidade”, diz.
Único deputado do PCdoB presente, Juliano Roso acusa o governador de criar uma “praça de guerra” ao encaminhar projetos que farão mal ao Estado sem propiciar maior debate com os servidores. “A democracia está sendo enterrada hoje porque o governador não quis dar mais tempo para o diálogo”, diz. Ele anuncia que permanecerá no plenário para fazer oposição aos três projetos condenados pelos servidores, mas anuncia votar favorável aos outros sete, com os quais não teria divergência. O PTB, que atua de forma independente nesta legislatura, toma posição semelhante.
Sem a presença da oposição, a base aliada rapidamente aprova oito projetos, inclusive o mais importante de todos, as alterações na previdência, tema que há décadas era debatido na AL. O placar é 35 a 5 – apenas PTB e PCdoB votam contra. A lei aprovada, que valerá apenas para futuros servidores, determina que eles se aposentarão com o teto do regime geral de previdência, ou seja, o do Instituto do Seguro Social (INSS), que atualmente é de R$ 4,6 mil. Se o funcionário quiser garantir uma aposentadoria mais gorda terá de fazer contribuições extras à Fundação de Previdência Complementar do Servidor Público do Rio Grande do Sul (RS-Prev).
Do lado de fora, parlamentares da oposição se reúnem com os servidores que estavam na Praça da Matriz para acompanhar o resultado. Com um sentimento misto de frustração e indignação, as entidades já prometiamintensificar a mobilização e anunciavam a presença de milhares de pessoas no próximo dia 22, quando a Assembleia deve votar um novo lote de projetos do pacote enviado pelo governador Sartori.
“A semana que vem será de pressão total aqui na praça”, disse Ortiz, da Ugeirm, reforçando a indignação dos servidores com o governo após a aprovação das alterações na previdência. “É um governador covarde e omisso que se esconde atrás dos mesmos policiais que está demonizando”.
Arnoud, da Fessergs, promete fazer a “denúncia” dos deputados junto a suas bases eleitorais no interior do Estado. “Nós seguiremos aqui, vigilantes, e vamos aproveitar para denunciar cada um desses deputados que votaram contra os interesses dos servidores públicos e da sociedade”, disse.
Ato VIII: A surpresa
No meio da tarde, porém, uma última surpresa. O PDT, partido da base, decide votar contra a extinção das fundações de Saúde e Esportes. Diante da possibilidade de derrota – os projetos exigiam maioria absoluta de 28 parlamentares -, o próprio governo retira o quórum. No momento, havia 27 parlamentares e seriam necessários 28 para as votações prosseguirem.
Apesar das tendas ainda permanecerem, com o término da votação e amargando a derrota em sua principal pauta, os servidores também se desmobilizavam e deixavam a Praça da Matriz. A saber se cumprirão a promessa de retornar em maior número na próxima terça.
*Colaboraram os repórteres Jaqueline Silveira e Marco Wessheimer
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