PL Espião, termo que internautas vêm usando para se referir ao Projeto de Lei 215/2015 e seus semelhantes, quer de uma vez só criminalizar a crítica aos políticos, legalizar a espionagem em massa e obrigar a remoção de conteúdo na rede
* Professor da ESPM Rio, relator independente da Parceria de Governo Aberto no Brasil, fellow de governo aberto da Organização dos Estados Americanos e coordenador-geral do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio.
Infelizmente ressuscitaram o fantasma do AI-5 Digital. O PL Espião, termo que internautas vêm usando para se referir ao Projeto de Lei 215/2015 e seus semelhantes, quer de uma vez só criminalizar a crítica que fazemos aos políticos, legalizar a espionagem em massa e obrigar a remoção de conteúdo na rede. A semelhança entre o PL Espião e o AI-5 da ditadura passa a ser evidente.
Quer falar mal de um político no Facebook? Prepare-se para correr o risco de ser investigado, sem autorização judicial, e de ir para cadeia condenado por crime hediondo, sem direito à fiança. É isso que o PL Espião propõe, e é isso que está para ser votado na Comissão da Câmara dos Deputados.
Além do PL 215/2015, entram na discussão os 1.547/2015 e PL 1.589/2015, que também tratam do mesmo assunto. Os autores das propostas são representantes do Maranhão, Rondônia e Rio de Janeiro, Estados com delicado histórico de violações à liberdade de imprensa. São eles os deputados Hildo Rocha (PMDB/MA), Expedito Netto (SD/RO) e Soraya Santos (PMDB/RJ).
O Marco Civil da Internet é a única legislação no mundo que garante direitos e deveres para uso da Internet. Nosso Congresso, mobilizado com a sociedade civil, aprovou a proteção de direitos como liberdade de expressão, privacidade e proteção de dados pessoais na Internet. Se o PL Espião seguir adiante, o Marco Civil está ameaçado.
O projeto proposto dispensa, por exemplo, a necessidade de ordem judicial prévia para ter acesso a sua comunicação privada. Dessa forma, seu email, suas mensagens de Whatsapp, seu histórico do Waze, sua lista de amigos do Facebook poderão ser coletados e usados contra você.
E quem conduzirá o processo não será um juiz, mas sim uma “autoridade responsável”, o que na prática significa que qualquer um que trabalhe para o governo pode ter acesso aos seus dados pessoais e a sua comunicação pessoal. Seu próximo investigador pode ser um funcionário do INSS.
Dilma, Merkel e vários outros políticos tiveram suas comunicações pessoais violadas. Essas foram algumas das revelações de Edward Snowden sobre os perigos da vigilância em massa. Para sentir o que o PL Espião pode fazer com você, veja o documentário Citizenfour, dirigido pela americana Laura Poitras e entenda por que vigilância em massa é um pesadelo para a democracia.
Se o PL 215/2015 passar, iremos oficializar em terras brasileiras a brecha para criarmos nosso próprio sistema de vigilância em massa. Com projetos de lei como esse, aceite que sua atividade no Facebook será suspeita até que se prove o contrário. Isso é mais que violar seu registro telefônico ou bancário. Os lugares por onde você foi, as compras que você fez no celular, seu deslocamento no Waze, tudo poderá ser investigado com requisitos mínimos de proteção de direitos básicos.
Investigar crimes é importante. O Brasil é um dos líderes mundiais em crimes cibernéticos, a proteção da honra nas mídias sociais é um desafio e a pornografia de vingança é de difícil investigação. Mas crimes devem ser investigados quando há indícios. Sem eles, todos somos inocentes até que se prove o contrário. O projeto como está indica que crimes podem ser investigados se houver queixa de um interessado. Queixa é um termo genérico, que não exige, por exemplo, identificação de qual crime pode ter ocorrido. É como se um policial parasse você na rua e te levasse para delegacia sem dizer o porquê. É errado, é inconstitucional, vai contra o Marco Civil.
E como se não bastasse, o projeto ainda institui o direito ao esquecimento na pior de suas vertentes. O direito ao esquecimento já é um debate bastante polêmico como está. Por um lado, precisamos ter o direito de controlar nosso passado na rede; por outro, a democracia deve ter sua memória preservada. Ainda não encontramos a fórmula ideal para balancear essa equação, mas o PL Espião é um desastre total nessa área. Na Europa, por exemplo, o direito ao esquecimento permite que pessoas comuns tenham seus dados pessoais removidos de mecanismos de buscas como o Google. Aqui, o PL vai permitir que políticos tenham sua vida pública removida da internet, por exemplo, de sites jornalísticos e blogs pessoais.
Num país com histórico de ditadura, corrupção, e violação de direitos humanos, como o nosso, o PL Espião vai institucionalizar o revanchismo histórico. Em vez de fomentarmos a compreensão, a memória e o debate, o projeto favorece o cerceamento à liberdade e a restrição ao acesso à informação. A sociedade civil já se organizou para demonstrar sua posição. No Avaaz, uma petição atingiu 150 mil votos, no Tumb.lr, uma coleção de memes expõem os desastres que vêm por aí e no Facebook, o debate começa a tomar corpo. O PL 215/2015 coloca em risco o Marco Civil, ressuscita fantasmas barrados na Lei Azeredo, e relembra o clima sombrio da ditadura.
ZERO HORA