Guardas municipais com poder de polícia em debate

17857640Estado propõe utilizar 2,6 mil servidores de 26 cidades para reforçar combate à criminalidade. Mas prefeituras questionam proposta pelo custo de manter as estruturas

Proposta como alternativa para a carência de efetivos no combate à criminalidade, a integração das Guardas Municipais ao trabalho das polícias poderia garantir hoje um incremento de 2,6 mil servidores nas fileiras da segurança pública, pinçados dentre funcionários de 26 cidades.

A ideia é defendida pela Secretaria da Segurança Pública (SSP), mas vista com cautela por gestores municipais por causa de um detalhe de peso: o custo para a manutenção dessas estruturas.

— Os municípios, com raras exceções, não têm como bancar esse custo, assumir mais esta demanda, que é de responsabilidade do Estado e da União. Não que eu não queira ou a ideia não seja boa. O problema é o recurso para isso — diz Luiz Carlos Folador (PT), presidente da Federação das Associações de Municípios do Rio Grande do Sul (Famurs) e prefeito de Candiota.

Independentemente de valores envolvidos, o projeto tem outros percalços a enfrentar. O principal é a vontade de atuar na segurança. Em 2014, a Lei 13.022 deu às guardas poder de polícia. Um ano depois, há cidades que se esforçam com as estruturas que têm para já fazer um trabalho nessa linha e, outros, que resistem, reforçando a ideia de que as guardas têm como função primordial a proteção patrimonial de bens do município.

Em Porto Alegre, parte dos agentes municipais usa arma, e o trabalho não tem foco em policiamento. O prefeito em exercício, Sebastião Melo (PMDB), diz que os guardas não têm preparação para atuar na linha de frente da segurança. Enquanto o debate se impõe pela necessidade de reforçar efetivos insuficientes para o combate à criminalidade, há municípios que já estão em outro ritmo. Um exemplo é Novo Hamburgo, que firmou convênio com a SSP para formar guardas de outras cidades e que tem tradição de atuar como polícia municipal, prendendo quando necessário.

Conforme a Associação de Secretários e Gestores Municipais de Segurança Pública do Estado (ASGMUSP), das 26 guardas existentes hoje no RS, 15 trabalham em algum grau no policiamento ostensivo e 14 fazem uso de arma de fogo.

— Em torno de 40% das guardas estão preparadas para fazer segurança nas ruas, em calçadões, áreas comerciais, a maioria com viaturas (e não com o agente a pé, como faz a Brigada Militar). Isso é importante (estar na rua), porque o que dá a sensação de segurança ao cidadão é a visibilidade do agente. Mas é preciso aperfeiçoar — diz Mauro Moro, presidente da ASGMUSP.

Secretaria quer sistema integrado de segurança

Foi o titular da SSP, Wantuir Jacini, que colocou em debate um sistema integrado de segurança dos municípios com o Estado. O objetivo é reunir esforços — recursos de pessoal e material — para fechar o cerco à violência. Por exemplo: a SSP pretende integrar os sistemas de videomonitoramento que cada município mantém isoladamente.

— Hoje, se roubam um carro na cidade A e vão para a cidade B, passam nas câmeras e ninguém sabe que o carro é roubado. É preciso ter um sistema: a placa é colocada no sistema, por onde o carro passar vai estar sendo monitorado, vão fazer barreira e prender. Queremos que os municípios se integrem entre eles e conosco — destaca Jacini.

A associação presidida por Moro aprova a parceria, mas aponta o que o Estado precisa dar: formação e treinamento padronizados por parte da SSP, acesso dos guardas ao sistema Consultas Integradas — que reúne dados de órgãos da segurança — e participação nos sistemas de comunicação. Em Novo Hamburgo (leia ao lado), os guardas têm acesso ao Consultas, para conferir foragidos e carros roubados ou furtados.

Segundo a SSP, o Estado já propôs o treinamento padronizado. Também está em discussão o acesso a informações e a possibilidade de existir um número único de emergência, que serviria para acionar qualquer um dos órgãos integrantes do sistema de segurança.

A Guarda em Porto Alegre

Efetivo de 497 servidores.
Desse total, 160 atuam em guarnições nas ruas e armados. Por turno, há 40guardas atuando na cidade.
Fazem a proteção de cerca de 600 prédios municipais, além de parques e praças.

Atuação: os guardas habilitados ao porte de arma atuam nos parques e nas praças, e, em flagrante delito, prendem e conduzem suspeitos. Não há efetivo suficiente para policiamento ostensivo.

Em Novo Hamburgo, efetivo local equivale a batalhão da BM

Foto: Guarda Municipal de NH/Divulgação

Os 190 guardas municipais de Novo Hamburgo atuam como policiais há mais de uma década. Cada um deles tem direito a usar um revólver — com porte permanente — e, em horários de serviço, recebem uma pistola, partilhada com colegas de outros turnos (são 78, em sistema de rodízio). Todos treinam, e a corporação acaba de construir “o maior estande de tiro” do Rio Grande do Sul, com salas de treino climatizadas.

Em janeiro, o efetivo deve aumentar para 220 agentes, o que tornará o contingente similar ao da Brigada Militar do município — são cerca de 250 PMs, um batalhão, hoje. O inspetor-chefe dos guardas municipais novo-hamburguenses, Erlínio Botega, diz que, na prática, os seus comandados agem como policiais: prendem assaltantes e traficantes, atuam contra desmanches de veículos e, em alguns casos, até fazem transporte de presos — tudo apoiado por videomonitoramento, embasado em 69 câmeras espalhadas pela cidade.

— Deixamos há muito aquele papel passivo, de guarnecer prédios. Meus guardas prenderam vários criminosos na Operação Papai Noel, que patrulha o centro nesta época de festas. Não queremos substituir as polícias, mas achamos que devemos apoiá-las — resume Botega.

Foram realizadas 106 prisões de janeiro a novembro de 2015 e recuperados 54 veículos furtados ou roubados. O vencimento dos guardas é hoje melhore que o dos PMs, ao ponto de policiais desistirem da carreira e fazerem concurso municipal, em busca de melhores rendimentos. O salário inicial é de R$ 2,1 mil, acrescido de adicional de risco de vida e outras vantagens, que elevam o valor para cerca de R$ 4 mil.

Mediante convênio com a Secretaria Estadual da Segurança Pública, Novo Hamburgo formará agentes para outros municípios. A academia local ministra 600 horas/aula aos novatos, algo que varia de quatro a seis meses de ensinamentos.

E o custo disso? É um dos mais altos dentre as secretarias municipais da cidade, mas Botega explica que o gasto é diluído, já que os guardas atuam também no trânsito e parte do valor das multas é revertida ao sustento da Secretaria de Segurança e Mobilidade Urbana, à qual os guardas são vinculados

Uma alternativa prevista em lei

Criadas para dar proteção aos bens, serviços e instalações municipais — conforme artigo 144 da Constituição Federal de 1988 —, as guardas municipais ganharam há pouco status similar aos das polícias estaduais. Ou seja, viraram alternativa à segurança pública no Brasil.

Em 15 de agosto de 2014, a presidente Dilma Rousseff sancionou a Lei 13.022, que formaliza o poder de polícia. O documento acrescenta aos deveres das guardas a missão de proteger vidas, com direito a porte de arma, e não apenas patrimônios, como antes. Podem, inclusive, atuar em conjunto com órgãos de segurança pública, agindo em situações de conflito, por exemplo.

É a formalização de uma performance que há anos é adotada por guardas civis do Rio e São Paulo. No Estado fluminense, por exemplo, são 8 mil guardas. Eles patrulham as praias contra furtos, tendo realizado centenas de prisões nos últimos meses. Fazem também rondas escolares e reprimem comércio clandestino de ambulantes. Eles dispõem, inclusive, de uma academia própria para formação e treinamento de pessoal.

Em São Paulo, a Guarda Civil Metropolitana atua há mais de uma década como polícia municipal. Reprime, além de comércio clandestino, o tráfico de drogas e até casos de tráfico de pessoas, em situações como cárcere privado, trabalho escravo e exploração sexual. Em janeiro de 2015, salvaram uma mulher que era vítima de tentativa de estupro. Em outro caso, trocaram tiros com ladrões de banco.

Guarda no RS

No Rio Grande do Sul, 26 municípios têm Guarda Municipal, com um total de 2.665 agentes.

– Das 26 corporações, 15 atuam fazendo policiamento ostensivo, com cerca de 2,1 mil servidores.

-Em 14 municípios, os agentes municipais já trabalham com arma de fogo.

-Em torno de 40% das guardas têm preparação para atuar na segurança de rua, mas ainda precisam de aperfeiçoamento.

-São destacadas como exemplo de funcionamento próximo ao ideal as guardas de Novo Hamburgo, Caxias do Sul e São Leopoldo.

-Uma das expectativas de autoridades municipais é de que a SSP promova a formação e o treinamento padrão para os servidores das guardas.

Como funciona em outros países

Estados Unidos – As polícias, nos EUA, nasceram municipais. São 12,3 mil corporações deste tipo, além das estaduais e agências federais. Só depois de décadas da independência, os Estados norte-americanos criaram polícias estaduais e a Polícia Federal (FBI). O xerife, tão conhecido nos filmes de faroeste, desempenha o papel de chefe de polícia municipal, que conta com ajuda de deputies (delegados). As polícias municipais contam inclusive com setor de investigação (missão que as Guardas Civis do Brasil não podem realizar).

Holanda – A polícia municipal existe em toda cidade com mais de 25 mil habitantes. É o maior efetivo — representa dois terços do total de policiais do país.

Bélgica – Polícias municipais representam metade do total de policiais do país.

Inglaterra — Tem polícias comunitárias que estão sob gestão municipal. E uma Polícia Metropolitana (abrange Londres e arredores) que inclusive tem corpo de investigação, não­uniformizado.

Espanha – Além das polícias nacionais, tem corporações comunitárias e locais, comandadas pelos municípios. Desempenham função semelhante à Guarda Municipal no Brasil. Fazem patrulhamento, mas não realizam investigações.

Foto: Luciano Lanes / Prefeitura de Porto Alegre
Foto: Luciano Lanes / Prefeitura de Porto Alegre

“Por mais que tenha treinamento, não é a Brigada Militar”, diz Sebastião Melo

Prefeito em exercício de Porto Alegre não concorda com a proposta de atuação da Guarda Municipal no policiamento

O prefeito de Porto Alegre em exercício, Sebastião Melo (PMDB), não concorda com a atuação da Guarda Municipal no policiamento de rua. Diz que para isso ocorrer, as competências em relação à Segurança Pública teriam de ser mudadas em lei. Leia trechos da entrevista que concedeu a Zero Hora:

Como a prefeitura vê a proposta de atuação da Guarda Municipal como polícia?

Segurança pública tem de ter sistema integrado envolvendo o governo federal, que tem de vir para essa conversa do ponto de vista de ações concretas e com recursos para os Estados, que hoje não têm dinheiro para nada. O município tem um papel que não é só o da Guarda. Uma cidade bem iluminada é um fator decisivo de segurança. Quando ilumina parques, é fator de segurança. Essas ações se complementam com a atuação das guardas.

Como a Guarda atua na Capital?

Nós temos, como outras cidades, efetivo reduzido. Às vezes, nos perguntamos “o que não faz a Guarda Municipal”? Por exemplo, uma criança tem um surto numa escola, a diretora chama a guarda. Uma grávida que não tem como ir para hospital, a guarda leva. Pichação, é com a Guarda. A Guarda tem múltiplas ações. Tem de trabalhar residualmente, muito integrada com todo o sistema de segurança. Esse debate é mais do que debate, já existe hoje um bom entrosamento.

É viável a Guarda fazendo policiamento?

Não enxergo a Guarda assim. Enxergo trabalhando residualmente na segurança pública. Por mais que tenha treinamento, não tem o treinamento de uma polícia ostensiva como é a Brigada Militar. Ela residualmente pode e deve agir.

O que é o residualmente?

Você tem os parques da cidade onde a Guarda faz ronda. Ela pode, ao encontrar determinada situação, abordar. Mas em outras situações não vai poder abordar, vai ter que se comunicar com a BM para que juntos ajam. Um trabalho integrado, especialmente zelando pelos espaços públicos. Não vejo hoje no Brasil, não vejo em Porto Alegre, essa condição de destacar a Guarda para estar na linha de frente da segurança. Ela tem de trabalhar residualmente, entrosada e articulada com as forças de segurança estaduais.

Não é possível nem para o futuro, com treinamento adequado?

Aí temos de pensar o que existe em outros países. Nos EUA, a segurança pública é cuidada pelas prefeituras. Aqui essas competências não são nossas. Para ter isso no futuro, teria de fazer uma inversão, o Brasil teria de decidir: as polícias passam a ser de competência dos municípios? Então vamos dotar os municípios nessas condições. Hoje, não é assim. O guarda não tem preparo para enfrentar essa criminalidade. Não concebo segurança pública com apenas mais brigadianos ou guardas nos espaços públicos. O fator segurança pública é muito mais complexo do que ter mais PMs nas ruas. O Brasil só vai melhorar em segurança quando tiver mais colégio integral, as crianças com acesso a cursos profissionalizantes, quando não se faça do Presídio Central e de outras cadeias a indústria do crime. Não é um ato isolado que vai melhorar a segurança. Quando tu botas GPS e botão de pânico nos táxis, é fator que ajuda. São várias ações integradas. Milagre não tem.

ZERO HORA