Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo*
Há pouco tempo escrevi aqui no Sul21 um artigo, fazendo o balanço dos quase 12 anos de governos capitaneados pelo Partido dos Trabalhadores (gestões Lula e Dilma), na área da segurança pública, em que reconhecia os avanços verificados, com o maior protagonismo do Governo Federal na indução e implementação de políticas de segurança nos estados, e também os limites dos resultados alcançados até agora. Entre as limitações, chamei a atenção para o fato de que, priorizando a política de controle de fronteiras e deixando inacabada a implementação do Programa Brasil Mais Seguro, o atual governo deixou de disputar simbolicamente as saídas para a redução da violência, dando margem ao recrudescimento do populismo punitivo.
O tema é particularmente importante, uma vez que boa parte da distinção que se pode hoje fazer entre propostas de esquerda e de direita, gira em torno das respostas à criminalidade. Para os partidos vinculados à esquerda democrática, uma política de segurança pública deve estar focada na prevenção à violência, por meio de melhoria das condições de vida e de acesso a direitos para todos, e da redução das oportunidades para o delito por meio de mudanças urbanísticas, ou de mecanismos de controle mais eficazes, como em relação à lavagem de dinheiro. Propõem também a qualificação dos mecanismos de repressão à criminalidade, com a valorização do trabalho policial e o investimento em melhores condições para a investigação criminal, garantindo assim a preservação dos direitos e garantias fundamentais do acusado. Quanto mais nos aproximamos da direita no espectro político, mais chamam a atenção propostas de endurecimento penal, com aumento de penas, redução da maioridade penal, pena de morte e a despreocupação com a violência e a corrupção policial. Já tivemos em tempos recentes um comandante da Brigada Militar no RS que considerava que defender o controle da atividade policial e criticar a ação da polícia em casos de evidente abuso de poder era o mesmo que favorecer bandidos, com o velho discurso de que “os direitos humanos são para humanos direitos”.
Já nos anos 90, o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos sustentou a tese de que, no contexto de grandes transformações sociais, ocorridas no final do século XX, que colocaram em crise o contrato social moderno, como a flexibilização das regras trabalhistas, o aumento da produtividade por meio de corte de postos de trabalho e o predomínio da “economia de cassino” do mercado financeiro globalizado, estaríamos diante do que chamou de “fascismo societal”. Se o fascismo característico do século XX era associado a regimes políticos totalitários, baseados na distinção entre “nós” e os “outros” para sua legitimação, o fascismo societal emergiria em sociedades formalmente democráticas, com eleições livres, mas incapazes de enfrentar o predomínio do mercado e seus efeitos deletérios sobre as demais esferas da vida social. Suas manifestações emergiriam com o crescimento do racismo e da xenofobia, o aumento da intolerância frente à diferença, a produção identitária em torno de valores associados à violência e a adesão ao discurso do populismo punitivo para o combate ao criminoso, visto como inimigo social a ser combatido, e não mais reintegrado à vida social.
Não é preciso ir para o conturbado contexto de crise da União Europeia para encontrar características deste tipo em nosso meio social. Se na Europa crescem as manifestações de racismo e xenofobia, que encontram guarida em partidos políticos de ultradireita, no Brasil esse discurso também é manipulado em períodos eleitorais, encontrando terreno fértil para sua disseminação em contextos urbanos com altas taxas de criminalidade, em que a sensação de insegurança resulta em adesão a promessas pouco racionais de fim da impunidade e mano dura contra os criminosos. A pesquisa “Retratos da Sociedade Brasileira: Segurança Pública”, recentemente realizada pelo Ibope, apresenta dados alarmantes sobre a adesão à proposta de redução da maioridade penal, e pouca abertura para o debate sobre temas como a regulamentação do mercado de drogas no Brasil¹.
No atual processo eleitoral em curso, entre as candidaturas mais competitivas à Presidência da República, é possível perceber uma adesão mais explícita ao discurso do endurecimento penal por parte da candidatura de Aécio Neves, do PSDB, que percorreu uma trajetória política do centro para a direita na última década, e hoje sustenta em campanha as propostas de responsabilização criminal de adolescentes infratores e aumento do encarceramento. O programa do candidato do PSDB não trata dos problemas decorrentes de políticas de endurecimento implantadas em São Paulo, por exemplo, pelos governos do seu partido, que levaram a altíssimas taxas de encarceramento e descontrole carcerário, com a criação e o crescimento da influência do Primeiro Comando da Capital, dentro e fora dos presídios paulistas. Se o candidato à presidência é mais contido na apresentação do discurso punitivista, candidatos a deputados estaduais e federais ligados a sua coligação têm menos receio em se apresentarem como os paladinos da lei e da ordem, o que muitas vezes é contradito por suas próprias práticas políticas.
O programa da candidata Marina Silva procura apresentar propostas mais racionais e equilibradas para a área da segurança pública, e caso estivesse discutindo na campanha esta temática poderia contribuir para a qualificação do debate. Apoiada por importantes quadros políticos, que já tiveram participação na formulação e implementação das propostas dos governos do PT na área, como Luiz Eduardo Soares, Marcos Rolim e Ricardo Balestreri, e que hoje são críticos ao que foi feito na área pelo PT, o programa da candidata do PSB propõe a implementação de um Plano Nacional de Redução de Homicídios, e investir na construção de um pacto federativo que amplie as competências da União e dos Municípios na área. Propõe ainda o aumento da dotação orçamentária para o Fundo Nacional de Segurança Pública, que seria multiplicado por dez em relação ao orçamento de 2013. Em que pese as boas intenções apresentadas, o conjunto de forças políticas que tem aderido à candidatura de Marina Silva, bem como a orientação programática na área econômica, que dá margem à introdução de políticas vinculadas ao receituário neoliberal, deixam muitas dúvidas sobre a sua real possibilidade de implementação. O plano para a segurança pública parece ainda vinculado à candidatura de Marina em 2010, com menos compromissos com a governabilidade e com menos responsabilidade em esclarecer como as propostas seriam implementadas, sem a construção de uma maioria parlamentar. É de se duvidar que avanços possam ocorrer, especialmente levando em conta os compromissos da candidata com a bancada evangélica, que representa um dos maiores entraves à implementação de políticas efetivamente inovadoras e democráticas para a redução da violência. Talvez exatamente por isso o tema esteja em segundo plano no debate eleitoral, e a candidata não tem apresentado de forma mais efetiva as suas propostas para a área.
O governo Dilma optou por recuar na implementação de políticas de segurança, a partir da constatação de que do ponto de vista constitucional a competência recai sobre os estados, que por meio das polícias civil e militar são os maiores responsáveis pelo enfrentamento do problema da violência e do crime. Mesmo assim, a realização da Copa do Mundo no Brasil obrigou o governo federal a implementar um programa de garantia da segurança para o evento, e o fez por meio da criação dos Centros de Comando e Controle, implantados nas 12 capitais que sediaram os jogos. A experiência deu resultado, garantindo a integração da ação das polícias e a redução das taxas de criminalidade durante a Copa. Com base nessa experiência, a presidente Dilma apresenta agora a proposta de tornar permanente a experiência dos Centros de Comando e Controle, e propõe a revisão do art. 23 da Constituição, dando também à União competência para atuar na segurança pública. Dilma propõe ainda a criação da Escola Nacional de Segurança Pública, para garantir a maior integração das polícias a partir de uma formação qualificada e baseada na matriz curricular nacional para formação de operadores da segurança pública.
É forçoso reconhecer que na área da segurança pública mais poderia ter sido feito, para a afirmação de um caminho alternativo ao punitivismo e à demagogia. De qualquer forma, entendemos que a candidatura Dilma Rousseff ainda é a que reúne as melhores condições para levar adiante uma perspectiva de esquerda democrática para a redução da violência e a garantia dos direitos humanos no Brasil. Em primeiro lugar, porque mesmo com todos os problemas e dificuldades na área, a redução consistente das taxas de desigualdade social no país, promovida pelos governos do PT, ainda é o melhor antídoto para os discursos de ódio e discriminação promovidos pelo neoconservadorismo. Em segundo lugar, porque há, nos programas e políticas implementados nestes 12 anos de governo, um norte claro a ser seguido: o foco na prevenção, a qualificação e valorização das polícias, a implementação de mecanismos que garantam a transparência e o controle público sobre as ações dos órgãos se segurança, o reconhecimento de demandas específicas de proteção a serem enfrentadas, como as das mulheres vítimas de violência, e da juventude negra, vítima prioritária da violência policial.
Garantir a segurança pública como um direito de todos é um compromisso que somente se efetiva com a ampliação da cidadania e da igualdade, incorporando ao âmbito dos direitos civis grandes contingentes da população brasileira historicamente discriminados. Nos parece que este é o grande desafio. E num momento como esse, as escolhas políticas não podem ser pautadas pelo ressentimento ou por características pessoais deste ou daquele candidato. O que está em disputa é um projeto de país, e é em torno desta disputa que irão se definir os rumos das políticas de segurança pública e redução da violência no Brasil.
A íntegra dos resultados está disponível emhttp://www4.ibope.com.br/download/111019_cni_seguranca.pdf
*Sociólogo, Coordenador do PPG em Ciências Sociais da PUCRS, pesquisador do INCT-Ineac e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública