ZERO HORA: Necessidade de repensar as polícias civil e militar ganha força no parlamento, na academia e nas redes sociais

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Tema de duas Propostas de Emenda Constitucional (PEC) esquecidas no Congresso, a desmilitarização da Polícia Militar ganhou corpo em episódios como a repressão da PM em São Paulo nos protestos e com o recente desaparecimento do pedreiro Amarildo de Souza, na favela da Rocinha, no Rio de Janeiro. Na esteira do debate sobre a desmilitarização, assuntos como ciclo único (polícia responsável tanto pela repressão ao crime quanto pela função judiciária), corrupção nas corporações e mais eficiência na investigação vêm à tona. Para especialistas e defensores dos direitos humanos, seria hora de repensar a polícia.

Na sexta-feira, foi informado o afastamento do coronel César Augusto Morelli do comando da Tropa de Choque da PM paulista, entre outras razões, pela contestada atuação nos protestos. Também surgiu a informação de que um traficante teria matado o pedreiro Amarildo para incriminar a PM.

A discussão sobre a reinvenção das corporações ocorre num contexto de violência em alta. O Brasil só perde para Venezuela e Colômbia em taxa de homicídios na América Latina, conforme a Organização das Nações Unidas (ONU), e tem a maior quantidade de mortes violentas do mundo em números absolutos, com cerca de 50 mil por ano — a Índia, segunda colocada, tem 40 mil homicídios por ano, com população cinco vezes maior que a brasileira. Para piorar, a taxa de solução desse tipo de crime no Brasil é de apenas 8%. E ainda há os cerca de 8,6 mil casos que não entram na estatística, conforme revelou na semana passada o Mapa dos Homicídios Ocultos, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).

Em maio de 2012, a Dinamarca chegou a recomendar, na reunião do Conselho de Direitos Humanos da ONU, que o Brasil extinguisse a Polícia Militar. A Anistia Internacional tem a mesma postura, em defesa da unificação das polícias em um padrão civil, com ciclo único (leia entrevista abaixo). O sociólogo Marcos Rolim é adepto da ideia de manter as duas polícias, mas com o ciclo completo em ambas (policiamento e investigação), sendo os casos divididos por tipo de delito.

— O problema é que temos duas metades de polícia que ficam brigando uma com a outra e não compartilham informação — observa Rolim.

Com a estrutura atual, prevista no artigo 144 da Constituição Federal, à PM cabe o policiamento ostensivo e à Civil as funções de polícia judiciária. Na visão do delegado Fábio Motta Lopes, diretor da Divisão de Ensino da Academia de Polícia Civil (Acadepol) e professor de Direito na Unisinos, o ciclo completo nas duas esferas é inviável.

— Policiamento de rua e investigação criminal são funções totalmente distintas — defende Lopes.

À semelhança das Forças Armadas

Por trás do termo desmilitarização há ainda outro aspecto sensível: a PM é constitucionalmente definida como uma força reserva do Exército, portanto, submetida a um modelo organizacional concebido à imagem e semelhança das Forças Armadas em questões de hierarquia e disciplina.

— Na medida em que não estão organizadas como polícias, mas como pequenos exércitos, os resultados são, salvo honrosas exceções, os desastres que conhecemos: ineficiência no combate ao crime, incapacidade de exercer controle interno, insensibilidade no relacionamento com os cidadãos — enumera o antropólogo Luiz Eduardo Soares, ex-secretário nacional de Segurança Pública.

Essa característica estrutural teria reflexos no treinamento dos soldados, voltado para combater o inimigo e não para mediar conflitos sociais. O coronel reformado da Polícia Militar do Distrito Federal Jair Tedeschi diz que o treinamento militar acabou — exceto nas unidades de choque. Durante os protestos no país, foi justamente a tropa de choque que atuou na contenção de multidões e na repressão aos grupos de vândalos infiltrados nos movimentos sociais. Em Estados como Rio e São Paulo, multiplicam-se críticas às corporações. Na Capital, 50 expedientes foram abertos pela Defensoria Pública para apurar supostos excessos na conduta policial.

PÍLULAS PARA DEBATE
Confira algumas propostas, com argumentos a favor e contra

Menos violência: a defesa da desmilitarização ganhou força após a repressão às manifestações de rua, principalmente no centro do país.
* Desvincular a PM das Forças Armadas. Acabaria com a hierarquia militar interna, abrindo mais a instituição.
* Poderia resultar em um enfraquecimento da instituição, calcada em hierarquia e disciplina inspiradas no Exército.

Mais transparência: mais proximidade com as comunidades e mais transparência na prestação de contas de suas ações.
* Aumentaria o índice de confiança popular na polícia.
* Não há contrariedade nesse ponto.

Ciclo completo: A PM começa o que não termina e a Civil termina o que não começa. Polícias devem patrulhar e investigar.
* Seriam solucionados problemas de concorrência entre as duas estruturas hoje existentes e de baixa cooperação mútua.
* As funções são muito distintas. A separação aumentaria os mecanismos de controle, uma estrutura regulando a outra.

Carreira única: delegados da Polícia Civil e oficiais da Polícia Militar têm carreiras distintas de inspetores e soldados.
* Aumentaria a perspectiva de progredir na carreira.
* Criaria uma demanda por recrutas mais especializados já no processo seletivo inicial.

Fontes: Fábio Motta Lopes, delegado e diretor da Divisão de Ensino da Acadepol, Jair Tedeschi, coronel reformado da Polícia Militar do Distrito Federal, Luiz Eduardo Soares, antropólogo e ex-secretário nacional de Segurança Pública, Marcos Rolim, sociólogo e consultor em segurança pública e Maurício Santoro, cientista político e assessor de Direitos Humanos da Anistia Internacional no Brasil.

ENTREVISTA — Jair Tedeschi, coronel da PM e ex-secretário de Segurança do Distrito Federal
Coronel reformado da PM do Distrito Federal há 17 anos, Jair Tedeschi diz temer que a desmilitarização da polícia enfraqueça a hierarquia e a disciplina que sustentam a instituição há mais de 200 anos. Em entrevista, Tedeschi falou sobre mudanças na formação da polícia brasileira.

Zero Hora — São cada vez mais frequentes os questionamentos sobre a ação policial. O Brasil precisa repensar o seu modelo?
Jair Tedeschi — A sociedade se rebela contra o cerceamento de qualquer direito. E esquece que tem dever. Ela quer ter o direito de se manifestar da forma mais livre possível, então inventou a nova bandeira da desmilitarização. A Polícia Militar recebeu essa denominação por causa da sua criação, mas hoje é muito mais cidadã. É uma força militar reserva do Exército para ser empregada numa situação extrema, mas está à disposição do Estado. Ela vem se transformando cada vez mais numa polícia cidadã.

ZH — Então o senhor é contra a desmilitarização?
Tedeschi — Desmilitarizar é tirar a hierarquia e a disciplina. Você tem uma instituição como a Brigada Militar aí no Sul, e a Polícia Militar, que são bicentenárias e estão vivas até hoje porque são calcadas em hierarquia e disciplina.

ZH — Mesmo no modelo que está posto, o treinamento da polícia poderia ser menos voltado para o enfrentamento?
Tedeschi — O treinamento militar acabou. Se você pegar hoje o currículo de formação de qualquer academia vai encontrar matérias realmente muito mais voltadas para o social. Hoje nos quartéis não existe mais esse negócio de ficar em forma, de fazer educação física, de treinar tiro. À exceção das unidades de choque, que são um pouco mais aquarteladas.

ZH — E qual sua opinião sobre a unificação das polícias civil e militar?
Tedeschi — Falando como cidadão, não como policial, quero uma polícia que me proteja. Quero ter uma entidade que me defenda, que esteja na rua evitando crime e que esteja apurando crime. Se for uma polícia única, tudo bem. Acho bom unificar, mas será que todo mundo aceita? No início de Brasília, nos anos 60, era uma polícia única, a Guarda Especial de Brasília. Depois é que se separou. Poderia ter sido um embrião, mas não foi essa a ideia. Se funciona? Funcionou naquele período.

ENTREVISTA — Maurício Santoro, assessor de Direitos Humanos da Anistia Internacional no Brasil
O cientista político Maurício Santoro, assessor de Direitos Humanos da Anistia Internacional no Brasil, defende a extinção da Polícia Militar e unificação das polícias num padrão civil. Confira trechos da entrevista.

Zero Hora — O atual momento do país gerou questionamentos em torno da estrutura da polícia brasileira. O Brasil precisa repensar o seu modelo de polícia?
Maurício Santoro — É uma pauta que não nasceu agora, mas ganhou um novo gás porque um conjunto muito significativo de pessoas da classe média, que não costuma ser vítima da violência policial, passa a ser, e isso gerou uma revolta. Em alguns lugares, como no Rio, tem havido uma interlocução entre os ativistas de classe média e os moradores das favelas. Isso ficou muito evidente no caso do Amarildo, que está simbolizando de uma maneira muito forte vários problemas que envolvem a Polícia Militar e a segurança pública.

ZH — O que o senhor pensa sobre a unificação das polícias Civil e Militar?
Santoro — Nossa posição (da Anistia Internacional) é de que a polícia brasileira seja unificada num padrão civil. Uma polícia de ciclo único, responsável tanto pelas funções de prevenção e repressão ao crime quanto da polícia judiciária. O modelo policial do Brasil coloca duas polícias num nível de cooperação frágil, isso acaba criando um ambiente que favorece o crime. A persistência da impunidade, a enorme dificuldade de a polícia investigar a si mesma, a existência de uma Justiça Militar dificultam muito qualquer reforma.

ZH — Uma polícia nesse formato seria mais transparente?
Santoro — Sim. Seria mais transparente, teria uma melhor prestação de contas, teria um outro tipo e relação com a sociedade. A lógica da Polícia Militar, sobretudo no Brasil, que é braço das Forças Armadas, é combate. Ela é treinada para enfrentar o inimigo. Só que isso é uma situação de campo de batalha e não de segurança pública, que deveria ter tipo de diálogo, um envolvimento mais forte com o dia a dia das comunidades onde atua. Outra situação que a militarização atrapalha muito no Brasil é que cria uma estrutura hierárquica rígida, de modo que um policial que queira criticar um oficial que esteja numa atitude ilegal, por exemplo, não vai encontrar ambiente favorável. Muito pelo contrário.