PIONEIRO: Servidores denunciam que detentos controlam Penitenciária Industrial de Caxias do Sul

O esquema é tão aberto que os presos circulam com notas de R$ 50 e R$ 100 e não tem hora para acontecer Foto: Marcelo Casagrande / Agencia RBS
O esquema é tão aberto que os presos circulam com notas de R$ 50 e R$ 100 e não tem hora para acontecer
Foto: Marcelo Casagrande / Agencia RBS

O esquema envolve extorsão, tráfico de drogas e o controle de setores que deveriam estar nas mãos do Estado

Leonardo Lopes

Por falta de fiscalização, a maior casa prisional da Serra está rendendo muito dinheiro para grupos criminosos. O esquema na Penitenciária Industrial de Caxias do Sul (Pics) envolve extorsão, tráfico de drogas e o controle de setores que deveriam estar nas mãos do Estado. A farra impossibilita qualquer tipo de ressocialização e ganhou mais força devido a um acordo informal entre os presos e a direção regional da Superintendência de Serviços Penitenciários (Susepe).

Para que os apenados não causem problemas, agentes têm feito vistas grossas em relação às irregularidades. A intenção é fazer com que o presídio aparente normalidade, quando, na verdade, tornou-se fachada para o fortalecimento de grupos criminosos.

Mas esqueça aquela visão de presos agindo de forma velada. Segundo agentes penitenciários e brigadianos, as negociatas na Pics são escancaradas. Os servidores presenciam diariamente o consumo de drogas variadas, tanto nas galerias quanto no pátio durante as visitas. Cordas de lençóis (chamadas de jiboias) são vistas com frequência transportando roupas, tênis, bonés e joias entre as janelas das celas.

O esquema é tão aberto que os presos circulam com notas de R$ 50 e R$ 100 e não tem hora para acontecer.Esse acordo, que é denunciado por agentes penitenciários e policiais militares responsáveis pela guarda externa, seria a explicação para a penitenciária não receber uma revista geral desde março de 2011. Naquela última grande ação, foram apreendidas 53 armas artesanais, 47 celulares, 267 papelotes de cocaína e 1.086 pedras de crack. De lá para cá, não houve mais pente-fino para encontrar objetos ilícitos ou detectar problemas estruturais. Em contrapartida, os detentos não fizeram rebeliões, algo que era corriqueiro anos atrás.

— É uma vergonha. Tudo é vendido. Tudo eles fazem dinheiro. Não é só a droga. Um telefone é vendido por até R$ 2 mil. Na primeira galeria, que está incontrolável, gira em torno de R$ 40 mil por mês. São quase R$ 500 mil por ano — calcula um agente penitenciário que prefere não ser identificado.

O dinheiro que alimenta o grande comércio na Pics entra de forma legal. Cada visita tem o direito de levar R$ 150 por semana para um apenado. A estimativa dos agentes penitenciários é de que quase R$ 1 milhão tenha entrado na Pics no ano passado. Em tese, esse montante deveria utilizado na cantina, onde são vendidos lanches. Na realidade, boa parte do dinheiro serve para movimentar o esquema de extorsão: o preso que não é respeitado entre os demais precisa pagar taxas para não sofrer agressões ou ser morto, problema já admitido pela juíza Milene Rodrigues Fróes Dal Bó, responsável pelos processos de apenados nos dois presídios e no albergue de Caxias do Sul.

— Quem cai lá dentro precisa ter dinheiro até para dormir em uma cama. O negócio é organizado. Tem um cara para vender e um companheiro logo atrás com um caderno para anotar. A cobrança é feita pelos chefes de galeria (que é chamada de prefeitura). Os dias de visita (quarta-feira e domingo) são os dias da cobrança. Quem não paga em dia, recebe um “aviso” que é uma agressão leve. Depois começam as ameaças —  relata um policial que atua nos muros da Pics.

O diretor admite que o presídio precisa de uma revista geral Foto: Marcelo Casagrande / Agencia RBS
O diretor admite que o presídio precisa de uma revista geral Foto: Marcelo Casagrande / Agencia RBS

“O apenado não controla a cadeia”, diz diretor de presídio de Caxias do Sul

Neste ano,  o diretor enviou duas solicitações à Susepe para a realização de uma operação na penitenciária, mas não recebeu resposta sobre prazos

O diretor da Penitenciária Industrial de Caxias do Sul (Pics), André Gomes Gomes, nega qualquer acordo com apenados ou descontrole na casa. Ele admite que o presídio precisa de uma revista geral. Neste ano, em consenso com a BM de Caxias, o diretor enviou duas solicitações à Susepe para a realização de uma operação na penitenciária, mas não recebeu resposta sobre prazos.

Pioneiro: Por que entram tantas drogas na Pics?

André Gomes: A gente tenta evitar, todos os dias. Só que a Penitenciária Industrial está na cidade e temos o problema dos arremessos. São drogas e celulares, como já apreendemos várias vezes. Fazem de tudo para ludibriar a guarda. As tentativas são várias e constantes. As visitas passam pelo detector e algumas vezes não deixamos entrar porque pode estar ¿enxertada¿. A proibição da revista íntima colaborou para este cenário. Nós realizamos o ¿bate-grade¿ diariamente. Quando chega a denúncia, na medida do possível, tentamos entrar na cela e apreender o material. Só que nosso efetivo funcional é reduzido.

A última revista foi em 2011. Por quê?

Já foi solicitada uma revista desde janeiro, após uma fuga. A BM requisitou e a direção da casa também. Entretanto, a desculpa é o déficit de efetivo da BM e da Susepe. A Pics é umas das maiores penitenciárias mista do Estado. Necessita de uma grande mobilização. Cabe aos comandos da Susepe e da BM determinar. Sou o administrador e solicitei (o pente-fino). Cinco anos (sem revista) é tempo demais. Teria que ter. Conforme as tratativas, esperamos que ocorra até o final do ano. No dia 20 do último mês (novembro), fiz uma nova requisição.

Há denúncias de uso escancarado de drogas e celulares no pátio.

Não tenho conhecimento das denúncias. No pátio, geralmente escondem. Não ficam demonstrando, eles mesmos (os presos) apertam. Não posso dar garantia que não exista isso. A droga é por arremesso ou entrada com as visitas.

Está cada vez mais difícil controlar a Pics?

O apenado não controla a cadeia. É uma inverdade. Com superlotação e o déficit funcional, tem o jogo de cintura. Os apenados têm um representante que fala por eles. Claro que há dificuldades em uma cadeia que é projetada para menos de 300 e comporta 600 presos. É administrar o caos. Eles têm a lei deles, mas respeitam a disciplina da casa. Se não seria o caos, um transtorno para todo mundo. Não se faz acordo com apenado. A Susepe tem uma portaria seguida à risca.

O que diz o delegado penitenciário regional Roniewerton Pacheco Fernandes:

A última revista geral realmente foi apenas em 2011. Porém, a direção da casa tem instrumentalizado revistas constantes em celas pontuais, além das vistorias que ocorrem após denúncias. Todas as celas são revistadas diariamente durante os horários de inspeção.Tivemos que cancelar operações de revista no ano passado e em fevereiro e setembro deste ano. Falta efetivo da BM para dar suporte a uma operação de grande vulto. Continuamos em tratativas para que ocorra ainda este ano.A entrada de drogas e celulares é um mal que atinge todas as casas prisionais do país. Na Pics, parte entra por meio de arremessos (para o pátio). Tentamos a instalação de uma tela, porém, a dimensão necessária requer uma extensão dos muros. Por outro lado, intensificamos as apreensões de materiais com visitantes. Neste domingo, por exemplo, foi encontrada maconha em um pacote de erva-mate. Não existe equipamentos de detecção de drogas no visitante, como um scanner corporal. Conforme a legislação, a revista é feita pessoa a pessoa.Sobre o comportamento dos presos, não temos recebidos denúncias. A direção da Pics não relatou nada e não tenho conhecimento de regalias. Posse ou uso de entorpecentes e celulares não é uma normalidade. Não há qualquer tipo de tolerância. Temos deficiência de efetivo como todos os outros órgãos. Há um concurso planejado que deve diminuir esta deficiência em todas as regiões.

Maior cadeia da Serra tem poucos agentes para controlar mais de 600 presidiários Foto: Marcelo Casagrande / Agencia RBS
Maior cadeia da Serra tem poucos agentes para controlar mais de 600 presidiários
Foto: Marcelo Casagrande / Agencia RBS

Detentos da Penitenciária Industrial de Caxias do Sul controlam até o castigo

Problema é tão escancarado que celas de isolamento também estão sob o domínio dos presos

O sistema de prefeituras de galeria é uma estratégia antiga em presídios. Para a direção das casas, é uma forma de comunicação com os detentos, capaz de evitar conflitos e separar facções rivais. Na Penitenciária Industrial de Caxias do Sul, esse sistema virou uma forma de domínio e enriquecimento de líderes criminosos.

O descontrole atual teve origem na primeira galeria, dominada por apenados que não pregam a disciplina. O problema não é tão escancarado na segunda galeria, onde estão traficantes mais experientes.

— A primeira galeria é só a chinelagem. Eles não estão nem aí. Não respeitam (os representantes da Susepe) e não cobram nada dos outros presos. É uma bagunça e não temos o que fazer. Para restabelecer a ordem, teríamos mandar eles andarem (transferência). Ou haverá confrontos e rebelião — revela um agente penitenciário.

Entre as tarefas da prefeitura estaria recolher os presos para a cela após o horário de sol. Desta forma, os agentes da Susepe não precisam se expor. Como não há controle por parte da direção da Pics, os detentos recusam fechar a galeria e estendem o horário para além das 20h.

— Na primeira galeria, todas as celas ficam praticamente abertas. Imagina quase 300 presos no corredor — relata o agente.

Outro desaforo: as celas de isolamento estão sob o domínio dos detentos. Esses locais são usados para detentos ameaçados, envolvidos em brigas e que foram flagrados com celulares ou drogas, por exemplo. Quem deveria determinar a medida é a direção da cadeia, mas são os detentos que usam o espaço quando desejam castigar quem está em dívida.

— A prefeitura determina e o detento pede para ir para o isolamento. Sabemos que é por ameaça dos outros, mas eles não relatam. Não dizem que estão indo porque estão em dívida — aponta um agente.
SAIBA MAIS

– Idealizada para possibilitar o trabalho de apenados, a Penitenciária Industrial há tempos virou apenas mais um presídio superlotado no sistema prisional gaúcho.

– A estrutura é dividida em duas galerias e um anexo feminino. Projetadas para quatro presos, as celas recebem até 16 detentos. Até ontem, a população carcerária era de cerca de 630 presos. A capacidade de engenharia é para 298.

– A separação dos apenados é decidida conforme a origem. Criminosos da Zona Norte, por exemplo, ficam na primeira galeria. Caso o preso não seja aceito, é transferido de galeria ou de presídio. Traficantes e detentos da Zona Sul são acomodados na segunda galeria. A estratégia foi criada para evitar conflitos e mortes.

– Um código informal de conduta prega que os problemas entre presos têm de ser resolvidos dentro do presídio. Por isso, é raro algum apenado registrar ocorrência ou relatar agressões. Quando necessitam de atendimento médico, eles inventam que caíram da cama ou que sofreram algum outro acidente.

Um dos PMs ouvidos pela reportagem demonstra desmotivação e reclama a falta de combate às irregularidades.  Foto: Marcelo Casagrande / Agencia RBS
Um dos PMs ouvidos pela reportagem demonstra desmotivação e reclama a falta de combate às irregularidades.
Foto: Marcelo Casagrande / Agencia RBS

Policial relata o que vê de cima dos muros da Penitenciária Industrial de Caxias do Sul

Maior cadeia da Serra tem poucos agentes para controlar mais de 600 presos, situação que facilita o tráfico de drogas e outros problemas

Responsáveis pela guarda externa da Penitenciária Industrial de Caxias do Sul (Pics), policiais militares presenciam diariamente o tráfico e outros esquemas entre os apenados da Pics. Assim como colegas de farda e agentes penitenciários, um dos PMs ouvidos pela reportagem demonstra desmotivação e reclama a falta de combate às irregularidades. Ele pede o anonimato para relatar o que vê de cima dos muros.

Pioneiro: Vocês enxergam o consumo de drogas na Pics?
Policial militar: Lá dentro é um comércio muito grande. Crack, maconha, cigarro e até bebida (alcoólica). Eles fabricam cachaça artesanal. É feito em baldes de 20 litros. Nós (policiais) sabemos porque eles colocam a bebida para fermentar no sol. Não tem como não ver. Se não fosse assim, não saberíamos.

Fazem o que querem?
Hoje, quem manda no presídio são os presos. São eles que coordenam, que dizem o que vai ser ou não. Existe um acordo informal lá dentro, do tipo ¿vocês fazem o que a gente (Susepe) pede e a respeitamos a vontade de vocês até um limite¿. É por isso que há tanto tempo não acontece uma rebelião. Não é porque está tudo sobre controle. É porque estão deixando a coisa acontecer à vontade. Tem droga e tudo mais que se imaginar.

Celulares?
Eles alugam o serviço. Emprestam o telefone na frente do banheiro externo, onde eles entram para falar. Assistimos aquele entra e sai. A maioria tem celular. Quem conseguir botar um celular lá dentro, ganha mais de R$ 2 mil.

Muito dinheiro circulando?
Não vemos notas de R$ 10. É só R$ 50 e R$ 100 nas mãos dos presos. Por isso tem gente lá que não quer sair. Lá de dentro, conseguem sustentar a todos lá fora. É de apavorar o quanto de dinheiro se movimenta lá. O forte entra nos dias de visita íntima. É só as visitas irem embora que começa o tendel.  Eles passam as coisas por uma jibóia (corda feita de lençóis) entre as janelas das celas e galerias.

Eles não tentam esconder?
É explícito. Os caras (detentos) fumam maconha na nossa cara.  Eles sabem que tem esse acordo lá dentro. Vejo a irregularidade e ligo para os agentes. Às vezes, apontamos até o nome, afinal conhecemos os vagabundos. Só que os caras (agentes) não vão atrás. Não há interesse em criar conflito com os presos. É uma filosofia (de trabalho), um acordo informal. Tem coisas difíceis de aceitar. Existe um horário determinado para o pátio. Seria das 9h às 16h em dia de visita. Só que se os caras  inventarem de sair às 8h30min, eles saem. Se quiserem ficar até as 19h com a porta da galeria aberta, eles ficam. Quando pedimos para os agentes fecharem (a galeria), eles retornam a ligação para dizer que os caras (detentos) não querem.

Vocês informam esses problemas?
Foi relatado até a nível de comando. Já entramos em divergências com os agentes (da Susepe). Só que nós trabalhamos juntos, precisamos manter uma certa harmonia. Um depende do outro, mas tem momentos que fica difícil. A Pics é precária. É uma casa penitenciária mal projetada e eles têm acesso a ferramentas lá dentro. Por isso, serram as grades. Eles (detentos) não fogem porque não têm o que fazer. Se forem para casa, a Brigada vai lá buscar. Fugir só para dizer que pulou o muro?

E quem não tem dinheiro?
Quem não tem dinheiro vai se comprometer com alguma coisa. Pode emprestar a namorada ou se sujeitar a cometer um crime. Para a gente, pode parecer complicado, mas os caras aceitam essa vida e muitos não querem sair. Eles alegam que trabalhando nunca vão conseguir comprar uma casa. Mas se envolver com o tráfico e roubos dá muito dinheiro em pouco tempo.

Como entra tanta coisa?
Tem a questão da revista íntima (que foi limitada por legislação), mas não é só isso. Tem os presos chamados de confiança que são os que executam os serviços, como de manutenção, dentro da penitenciária. Esses presos têm livre circulação. Fazem o que querem. Até ir do lado de fora e voltar. Eles têm acesso à máquina de solda, a ferramentas e até veículos. Eles sabem tudo e passam as informações lá para dentro. E os que estão dentro (das celas) têm todo o tempo do mundo para cuidar a nossa rotina. Sabem quando trocamos de turno, quais brigadianos ficam mais relaxados na guarita, quem não dá bola (para as infrações). A verdade é que nós da BM já pisamos no freio. Não adianta ficar ligando a toda hora. Avisamos uma vez e depois, se não tomam nenhuma atitude, não nos envolvemos mais. Foge totalmente da nossa alçada.