RJ: Mudança de batalhão e excesso de ‘bicos’ agravaram quadro de PM que transmitiu suicídio ao vivo

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O PM Douglas Jesus de Oliveira, morto aos 28 anos Foto: Reprodução da internet

Dívidas agravaram quadro de PM que transmitiu suicídio ao vivo

Luã Marinatto EXTRA
Na equação que antecedeu o suicídio do PM Douglas Jesus de Oliveira, que transmitiu ao vivo a própria morte na internet, no último sábado, é impossível, para parentes e amigos, apontar um único motivo. Entre a perda da avó, um processo de separação e voltas com a mãe da filha de pouco mais de 1 ano e os atrasos de salário, porém, duas questões agravadas nas semanas anteriores à tragédia surgem como hipóteses prováveis, para os mais próximos do soldado, de 28 anos: devido à falta de dinheiro, ele havia intensificado o trabalho como segurança nas horas vagas; além disso, a transferência do 9º BPM (Rocha Miranda) para o 24º BPM (Queimados), bem mais longe de casa, cerca de 20 dias antes do tiro fatal, o deixou ainda mais cansado e deprimido.

— Tinha dia em que ele saía do trabalho e emendava na segurança, ou o oposto. Dormia pouquíssimo. Além disso, estava com o carro enguiçado, sem moto, sem dinheiro. Como ia para Queimados? Isso tudo acumulou, ele ficava nervoso — contou a viúva Rayane Cristina dos Santos, de 25 anos, de quem o soldado não chegou a se divorciar.

No Facebook, Douglas vinha falando com frequência de solidão, segundo amigos presentes ao enterro, ocorrido nesta segunda-feira, no Cemitério de Irajá. A depressão se agravou há cerca de dois anos, após a morte da avó que o criou e com quem morava. Em maio do ano passado, ele chegou a ficar uma semana internado na psiquiatria do Hospital Central da Polícia Militar (HCPM), no Estácio, após tentar suicídio ingerindo bebidas e medicamentos.

Na ocasião, de acordo com a corporação, ele optou por continuar o tratamento em “uma unidade próxima da residência dele”. Ao término das consultas, ainda conforme a PM, o soldado passou pela Junta Médica do HCPM e foi liberado para retomar as atividades.

— Eu acho que deveriam ter mais cuidado. Não era a primeira vez que ele apresentava esse tipo de problema — criticou Rayane.

A fachada do 24º BPM (Queimados), onde o soldado passou a trabalhar
A fachada do 24º BPM (Queimados), onde o soldado passou a trabalhar Foto: Cléber Júnior

Afastado pela primeira vez após assalto

Os primeiros problemas psiquiátricos de Douglas surgiram em 2012, após reagir a um assalto e matar um dos criminosos. Além de ser afastado do trabalho para tratamento, o soldado passou, segundo a viúva, meses tomando remédio para dormir.

— Ele nunca mais voltou totalmente ao normal. Ficava tenso toda vez que passava uma moto, colocava a mão na arma. Ficou quatro meses em casa. Um dia acordei de madrugada com ele me dando um soco. Ele pediu desculpas e disse que sonhou que os bandidos estavam atrás dele — lembra Rayane.

Como Douglas não morreu em serviço, a PM não arcou com os custos do sepultamento. O enterro só pôde ser realizado graças a uma vaquinha de colegas de farda.

Veja, abaixo, a íntegra da nota enviada pela Polícia Militar:

“A Assessoria de Imprensa informa que o soldado Douglas de Jesus Vieira já foi atendido no Setor de Psiquiatria do Hospital Central da Polícia Militar (HCPM). No caso mais recente, o policial retornou à Unidade, no ano passado, e recebeu Licença para Tratamento de Saúde (LTS). Na ocasião, ele optou por continuar o tratamento em uma unidade próxima da residência dele. Ao término das consultas, o soldado passou pela Junta Médica do HCPM e foi liberado para retomar as atividades.

A Polícia Militar conta com 98 psicólogos e 4 psiquiatras. Os policiais militares que precisam do serviço também podem ser encaminhados para acompanhamento na rede conveniada.”

Policial Francisco, hoje em dia na área administrativa da polícia – Ana Branco / Ana Branco / Agencia O Globo

Em apenas um ano, PM concedeu 1.398 licenças psiquiátricas

Estresse e a depressão estão entre as principais causas de afastamento do serviço nos quartéis do estado

POR CAIO BARRETTO BRISO, ELENILCE BOTTARI E JÚLIA AMIN

RIO — Tudo começou com um mal-estar. Depois, a batida acelerada do coração se tornou algo frequente na vida do policial militar José (nome fictício). Veio ainda uma dor de cabeça crônica. Uma sensação de desespero o atormentava, “uma vontade de desistir de tudo”. E o medo de morrer nunca mais o abandonou. José viveu um drama silencioso durante anos. Com uma década de vida militar, não tinha coragem para pedir ajuda. Aprendeu, no curso de formação de praças, que um policial deve suportar tudo. Contra sua vontade, foi encaminhado por um médico do Hospital Central da PM para o setor de psiquiatria. Resistiu até o dia em que seu próprio comandante atendeu ao pedido da equipe médica. Foram sete meses em tratamento, com consultas frequentes a um psicólogo militar, tomando remédios para depressão e controle de agressividade, como Rivotril e Donarem. Há um ano, José voltou ao trabalho, mas em funções administrativas. Foi proibido de portar arma e, por isso, perdeu sua segunda renda, os “bicos” que fazia como segurança.

— Perdi a conta de quantos colegas foram mortos em serviço e de quantas vezes fui desrespeitado. Numa blitz na Ilha do Governador, abordei educadamente um motorista que dirigia um carro com placa sem lacre. Era um desembargador. Nunca fui tão maltratado — recorda. — Relutei em aceitar ajuda. Ouço piadas dos meus colegas até hoje, alguns pensam que armei essa situação para não trabalhar. O pior de tudo é saber que a sociedade não gosta de mim.

ESTRESSE E DEPRESSÃO

Pressionados pelo papel institucional e consumidos pelo medo de serem vistos pelos colegas de farda como loucos ou encostados, policiais militares do estado sofrem hoje de um mal silencioso que, só no ano passado, foi responsável por 1.398 licenças psiquiátricas. O estresse e a depressão estão entre as principais causas de afastamento do serviço nos quartéis do estado. Dados do Núcleo Central de Psicologia (Nucepsi) da PM revelam que, em 2016, foram 20 mil atendimentos psicológicos para um universo de 2.296 pacientes, sendo 46% da ativa (o serviço atende também inativos, familiares e outros profissionais da corporação). Segundo o chefe do Nucepsi, o tenente-coronel Fernando Derenusson, entre as principais causas do problema, estão questões estruturais, como a própria formação dos oficiais:

— Eles entram para a academia muito novos e aprendem que devem suportar e vencer tudo. Respeitam hierarquia e disciplina. Os oficiais aprendem que a polícia não pode recuar, e vão passar esse sentimento para os praças. Por isso, é tão difícil para eles aceitarem ou reconhecerem que precisam de ajuda.

De acordo com o psicólogo, a falta de reconhecimento também é uma dor comum à tropa:

— Ele se sente dando a vida por alguém que não o reconhece. O policial se expõe ao perigo extremo e não sente retorno. Essa conta dentro dele não fecha, está muito desigual.

Um estudo feito sobre 430 licenças psiquiátricas realizadas no ano passado revelou que, em 40% dos casos, os policiais tinham, no máximo, cinco anos de serviço. Por trabalharem em áreas de conflito social e sofrerem hostilidade por parte dos moradores, PMs de Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) são, proporcionalmente, os que mais apresentam problemas de estresse.

Quando entrou na corporação, em 2002, o chefe do Nucepsi atendia mais familiares de militares do que os próprios policiais. Isso se inverteu nos últimos anos. Segundo Derenusson, “a crise econômica do estado potencializou todos os problemas”. A incerteza quanto ao futuro, diante da possibilidade de aumento do tempo de serviço necessário para que os policiais se aposentem, desequilibra ainda mais o estado emocional da tropa. No momento, são 98 psicólogos espalhados pelo estado. Eles atuam em 32 batalhões, dois hospitais (Rio de Janeiro e Niterói) e quatro policlínicas, trabalhando para 47 mil policiais na ativa — fora aposentados e familiares. Para piorar, a corporação conta com apenas quatro psiquiatras.

— Muitos procuram um psicólogo particular, não só por vergonha dos colegas e superiores, mas também porque não há atendimento para todo mundo — afirma um PM de um batalhão especial. — Só os policiais sabem a realidade que vivemos. Trabalhamos em escalas desumanas. Comemos em lugares onde ninguém come. Não temos um hospital digno. Somos perseguidos se pedimos ajuda e cobrados como se estivéssemos recebendo o melhor salário do mundo. É muita hipocrisia.

A preocupação com o problema da depressão da tropa levou a corporação a fazer um convênio com o Laboratório de Análise da Violência da Uerj. De acordo com o Grupo de Estudo e Pesquisa em Suicídio e Prevenção (GEPeSP), que reúne pesquisadores da universidade e representantes da PM, dez policiais do estado cometeram suicídio no ano passado. De acordo com a socióloga e pesquisadora do GEPeSP, Fernanda Cruz, embora não seja possível apontar um único motivo para o problema, a crise institucional da corporação, atrelada ao estresse e à violência diária, deixam os trabalhadores mais vulneráveis a atos extremos.

— Não acreditamos em um único fator. O suicídio dentro da PM do Rio tem várias causas. Policiais que se separaram, estão sem receber, mataram alguém, têm problemas familiares… Mas existe uma grande dimensão institucional no suicídio do policial do Rio — afirma Fernanda, que entrevistou, com os pesquisadores, 224 policiais: 22 deles já haviam tentado tirar a própria vida e outros 50 pensaram em se matar.

De acordo com Fernanda, o número de psicólogos e psiquiatras na corporação é insuficiente para atender os 47 mil policiais da ativa:

— Quando atuamos dentro da corporação, falamos que os policiais podem procurar serviços psicológicos no seu próprio batalhão, em outro ou até em clínicas sociais. Muitos deles não o fazem devido ao estigma social. Mas o serviço não é suficiente para dar conta da demanda. No Rio, por exemplo, não se tem um atendimento para acompanhar o PM depois de situações estressantes e que envolvam perda, morte, ou disparo de arma de fogo. Um dia após perder um amigo na sua frente, o policial já é obrigado a trabalhar.

CORPORAÇÃO TENTA REAGIR

Preocupada com o alto número de policiais assassinados este ano — foram 17 até o momento —, a PM vai intensificar o Programa Permanente de Capacitação Continuada (PPCC) em cinco batalhões, que estão entre os dez com maior taxa de letalidade: Alcântara (7º BPM), Niterói (12º BPM), Caxias (15º BPM), Irajá (41º BPM) e Méier (3° BPM). O objetivo do programa é ajudar o policial a tomar a melhor decisão em momentos de perigo. O PPCC tem duração de quatro semanas e conta com a utilização do Estande de Tiros e Tomada de Decisão Virtual. A ideia é aperfeiçoar especialmente o tiro de defesa em situação de ameaça.

Além disso, a PM tem o Serviço de Atenção à Saúde do Policial, que desenvolve um programa voltado à prevenção em saúde da tropa ativa, com objetivo de avaliar a situação médica, nutricional e psicológica dos policiais a cada três anos. Por dia, em média, os psicólogos atendem 80 policiais. Hoje a corporação realiza o Fórum de Policiais Mortos e Feridos no estado, no qual será debatida a situação de suas famílias. Também serão revelados dados sobre a situação da saúde mental da tropa.

Ao mesmo tempo em que vive sob crescente ameaça, com alto nível de tensão e o medo constante de ser assassinado a serviço ou durante a folga, o policial fluminense trabalha como nunca. Para se ter uma ideia, foram 371 fuzis apreendidos em 2016, número recorde. Para muitos, o sonho de ser policial foi trocado pelo de devolver a farda.

— Estou estudando, quero prestar outro concurso público — afirma o policial José. — A gente se sente abandonado pela sociedade.