EM BUSCA DA PAZ: Capitão da BM conta como é sua rotina e o que aprendeu como voluntário na Guiné-Bissau

PLANTANDO A SEMENTE DA MUDANÇA

WAGNER ESTANISLAU WASENKESKI

POR LUCIAMEM WINCK CORREIO DO POVO

O capitão Wagner Estanislau Wasenkeski, 37, lotado no 3?Batalhão de Polícia Militar, em Novo Hamburgo, retornará da África em agosto. Ele é o único oficial da Brigada Militar em Missão de Paz pela Organização das Nações Unidas (ONU) na África desde 17 de fevereiro de 2016, quando deixou o Rio Grande do Sul rumo a Bissau, capital da Guiné-Bissau. A primeira parte da missão se deu com trabalho junto com os conselhos e forças de segurança locais, onde além de planejamento estratégico, patrulhamento e estudos para coibir as ações terroristas,Wasenkeski se destacou pelos ensinamentos repassados aos colegas africanos sobre a filosofia de Polícia Comunitária.Além disso, crianças receberam ensinamentos sobre o Programa de Resistência às Drogas e à Violência (Proerd).“Sempre reforço a importância de se manterem na escola.Precisamos mudar a realidade do país, onde 60%da população é analfabeta.” Em 22 de novembro, foi transferido para Bubaque, uma ilha distante cinco horas de barco do local do início da missão.“Essa tem sido a fase mais dura por conta do elevado grau de pobreza dos habitantes.Igualmente não domino o idioma deles.E, o pior, é conviver diariamente com a solidão”, confidencia Wasenkeski, que dispõe da companhia de apenas um policial espanhol em seu trabalho na ilha.A missão agora é mais arriscada.Atua nas investigações navais e de tráfico de crianças, além da violência doméstica e de todas as questões de direitos humanos que envolvem países em conflito.Apesar da distância, segue visitando Bissau para matar a saudade dos “filhos” africanos.“Não importa onde eu esteja, sempre penso nelas. Não vou mudar o mundo, a realidade, mas estou plantando a sementinha !”

Como foi o ingresso na Brigada?

Sou formado em Direito pela PUCRS. Advoguei por aproximadamente cinco anos. Fiz concurso para oficial da Brigada Militar. Também me formei em Educação Física pela Ufrgs em 2007. Com a conclusão em 2009 do Curso Superior de Polícia Militar, pela Academia de Policia Militar do RS, também finalizei o bacharelado em Ciências Militares com Ênfase na Defesa Social. Entrei na corporação com 28 anos. Meu pai é coronel da reserva, então, quando criança, eu brincava nas unidades da BM, como o 5º BPM, em Montenegro, o 3º BPM, em Novo Hamburgo, e a Casa Militar, no Palácio Piratini, em Porto Alegre, unidades que ele comandava naquele tempo. Aproximadamente 21 anos após ele deixar o 3º BPM, como capitão, eu retornei à unidade. Revivi boas lembranças, reencontrei pessoas e, com muito orgulho, ainda lá estou lotado, embora temporariamente esteja afastado para servir na missão de paz.

Quem ficou no RS te esperando?

Tenho 37 anos, sou casado com Rosana Correia, que muito me apoia para estar aqui, ainda não tenho filhos. Tenho duas irmãs, Veronica e Waleska, meus pais se chamam Waldyr e Vera. Tenho dois sobrinhos: Pedro e Victoria. Alem desses, há muitos outros familiares, colegas e amigos que esperam meu retorno e que, seguidamente, procuram manter contato, para diminuir a saudade.

Como surgiu a ideia de participar de uma missão humanitária? És só tu da BM? E de PMs quantos?

Sempre fui admirador das causas humanitárias. No ano de 2004, me alistei ao programa de voluntariado do desastre do tsunami na Indonésia. Recebi uma primeira resposta, aguardei, mas acabei não sendo chamado. Em 2005, participei de uma missão na Floresta Amazônica. Eu ainda não era policial militar, mas desde então já fixava na cabeça a ideia de participar de uma Missão de Paz. Meu tio, Evaldo Venício Wazenkeski, nos anos 60, foi integrante do Batalhão Suez pela ONU, e suas histórias já me incentivavam. Hoje ele é falecido e, quando parti para minha missão, um dia antes, ainda passei no cemitério em São Leopoldo, quando em frente ao seu túmulo fiz minha última oração para no dia seguinte embarcar.

Existe outro fato que também me influenciou na decisão. Minha mãe teve uma gravidez muito complicada para eu nascer. Então, na véspera da partida eu disse a ela: “Tu pediste a Deus para ter um filho são. Ele te atendeu. Então, agora, empresta ele temporariamente para que ele também possa lutar pelos filhos das outras mães, que tanto estão precisando.” Evidentemente, ela me deu seu apoio. Na Guiné-Bissau, oficialmente República da Guiné-Bissau, só há eu da Brigada Militar, creio que hoje não haja mais outro integrante da BM em alguma outra missão da ONU como Unpol (United Nations Police), mas não tenho absoluta certeza. Existem muitos colegas de vários países aqui na missão. Mas de PMs brasileiros, somente eu e mais dois da PM do Rio Grande do Norte.

Quais os momentos mais difíceis passados desde a tua chegada?

Logo que cheguei me deparei com realidade bastante diferente da que vivia. Muito calor, poeira, ruas esburacadas, trânsito muito denso, falta de higiene em alguns locais, comida diferente, idioma diferente, religião diferente e o mais complicado: a falta dos amigos, da esposa e da família. A comunicação com minha família era difícil, ainda não possuía telefone funcional e a internet tinha sinal muito fraco. Aos poucos fiz amigos, mas, enquanto isso, tive momentos de solidão. Logo nos primeiros dias, recebemos a informação de haviam sido presos pelas Forças de Segurança três integrantes da Al Qaeda infiltrados no Exército Guinense. Mais para o Leste da Guiné-Bissau, nos países de Mali, Costa do Marfim, Sudão do Sul e Angola, começou uma onda de ataques terroristas, vitimando muitas pessoas, dentre elas mais de cem boinas azuis. Fora o exterior, a tensão política envolvendo o presidente do país, povo e governo, falando-se constantemente em ameaça de golpe militar, nos deixava preocupados uma vez que pouco se sabia do que podia acontecer. Com aproximadamente um mês de missão, recebi a tarefa de viajar a todas as regiões da Guiné-Bissau. Nas aldeias pude observar precárias condições de vida. Tomávamos banho de caneca, comíamos o que nos era oferecido (e, graças a Deus, gentilmente nos ofereciam), descansávamos pouco para no dia seguinte continuar e tomávamos cuidado com a iminência de contrair malária. Uns meses depois, em Guiné-Bissau, mesmo com cuidados, acabei por contrair malária, mas me curei. Certa vez tomamos conhecimento de uma ocorrência em que uma mulher, após discussão com a mãe de duas crianças pequenas, as jogou em um poço, ocasionando suas mortes. Também interceptamos um caminhão que transportava 20 crianças, sem autorização dos pais, para trabalho infantil. Após trabalhar aproximadamente 9 meses na capital, fui designado a cumprir o resto da missão na Ilha de Bubaque, no Arquipélago de Bijagos, distante cinco horas de viagem de barco. Tive de me despedir de todos os colegas e de quem havia feito vínculos de amizade na Capital. Na ilha, trabalhei sozinho. Não conhecia as pessoas. Esses momentos foram bem difíceis, senti muita falta de casa. Mas não desisti. Passei o Natal sozinho, na mais completa solidão. Fui dormir às 22h, mas felizmente meus amigos, familiares e colegas me mandaram muitas mensagens e vídeos a fim de me fazer “companhia”. Isso fez uma grande diferença. Na virada do ano, novamente tive momentos de solidão, mas aos poucos fui fazendo amizades e, gentilmente, me convidaram para uma janta, com algumas pessoas do povo local. Embora tenha me sentido acolhido, senti falta de casa naquele instante. Esses momentos todos não foram nada fáceis. Ressalto que as despedidas dos colegas boinas azuis, quando finalizavam suas missões foram bem difíceis.

E os momentos mais emocionantes?

As primeiras acolhidas do povo local, as demonstrações de carinho e partilha nas viagens às aldeias do interior quando nas múltiplas missões que recebi, o contato com as crianças, foram verdadeiramente momentos que não esquecerei. Lembro me de uma viagem de cinco horas numa canoa, em direção à Ilha de Bubaque. Nessa embarcação, havia vacas, porcos, galinhas, cabras, ovelhas e uma superlotação de pessoas. Antes de partir, ainda esperamos duas horas dentro da canoa. Eu não tinha almoçado, nem tomado café da manhã. Estava cansado e, encostado na parede, acabei por adormecer. De repente, um homem me acordou e me ofereceu um sanduíche. De pronto aceitei, pois estava com fome e já com sede. Achei bonita a atitude de partilha, pois eu estava dormindo e sequer veria que estavam comendo. Não estava fardado e, portanto, parecia apenas mais um turista que por ali passava. Todavia lembraram-se de partilhar. Pensei: “Será que na minha terra seria assim? Talvez…”.

Como é conviver com tantas diferenças?

A vida é bem mais complicada aqui, em vários sentidos, mas quem deseja contribuir com sua boa vontade em uma Missão de Paz, deve se esforçar para nesse tempo deixar um pouco de lado seu conforto. Eu penso que quem, ao longo de sua vida, não treinou sua humildade, um dia poderá ter grande dificuldade. Nós nunca sabemos quando podemos perder as coisas que temos, em especial o conforto. Nossas vidas podem mudar da noite para o dia. Uma das coisas mais importantes que aqui aprendi foi que não importa se tu és rico ou pobre, se tens o posto de capitão ou de soldado, qual a língua ou o país de onde vens, se és branco, preto ou verde! Quando tu estiveres sozinho, longe de tudo que mais amas, sempre precisarás de amigos, de alguém para te mostrar onde há comida, lugar para dormir ou até onde conseguir água. Todas essas coisas simples, temos de sobra em nossos lares, mas quando não as tivermos, nesse momento seremos todos iguais! Gostaria que meus futuros filhos aprendessem isso. Sou grato ao povo guinense por tal ensinamento.

Você aplica ensinamentos do Proerd para a gurizada africana. Como tem sido essa experiência?

Como já trabalhava com o Proerd no Vale dos Sinos, entendi que seria uma oportunidade utilizar os conhecimentos aqui. Trabalhamos questões de resistência às drogas, evitar sempre a violência, denunciar a um amigo policial algum tipo de abuso que tenha conhecimento e fundamentalmente, jamais desistir da escola. Às vezes lembrava das palavras de meu avô Jose Riccardi: “Estuda, meu filho, porque o que está na tua cabeça ninguém te tira.” As crianças trabalham desde muito cedo aqui. Com sete, oito anos, já trabalham em atividades domésticas, lavam roupa e louça, fazem limpeza, tiram água do poço, cuidam dos irmãos menores e vendem frutas nas ruas. Dessa forma, terão que dividir o tempo de estudo, com todas essas atividades.

Noto que uma das tuas principais preocupações são as crianças…

Penso que todo o homem, novo ou velho, rico ou pobre, estudado ou analfabeto, cidadão de bem ou delinquente, um dia já foi criança. Eu já fui criança, todos nós adultos já fomos crianças e tudo que absorvemos enquanto crianças ou a atenção que nos foi dada nessa época, influenciará no que seremos no futuro. Tenho visto, não só aqui na África, que há crianças que sequer têm o direito de serem crianças. Se quisermos que as pessoas mudem, e consequentemente o mundo mude, precisamos pensar nelas. Desse jeito estaremos verdadeiramente pensando na humanidade, de forma efetiva.

Quando deixares a África serás uma pessoa melhor?

Sim, saio daqui uma pessoa melhor. Reforcei ideias, outras aprendi a ver por outros lados. Aprendi com muitas culturas, desenvolvi o respeito pela diversidade. Darei ainda mais valor às coisas simples da vida, pois durante esse tempo, senti o que é ser privado até do simples. Serei sempre grato a Deus pela oportunidade de ter vindo para ajudar, mas, ao final, sair mais ajudado. Não existe razão para passar por este mundo sem, ao ir embora, tê-lo deixado melhor.

“Tenho visto, não só aqui na África, que há crianças que sequer têm o direito de serem crianças. Se quisermos que as pessoas mudem, e consequentemente o mundo mude, precisamos pensar nelas.”