Estado enfrenta o efeito dominó de interdições nas cadeias. Uma em cada cinco prisões está interditada, seja parcial ou totalmente. Isto é, das 101 unidades prisionais em funcionamento, 23 operam com alguma restrição da Justiça
Incapaz de assegurar condições mínimas de encarceramento, o Estado enfrenta o efeito dominó de interdições nas cadeias e de liberação de apenados para cumprimento de prisão domiciliar especial por falta de vaga. São 5.116 presos condenados que não estão recolhidos por inexistência de espaço físico, segundo levantamento da Corregedoria-Geral da Justiça. Destes, 2.878 usam tornozeleira eletrônica. Os demais nem sequer são monitorados.
— As tornozeleiras apenas nos informam a localização do apenado, mas não evitam a criminalidade. Sobre os outros 2.238, não há controle algum. Estão livres nas ruas — critica o juiz-corregedor Alexandre Pacheco.
Dados da Superintendência dos Serviços Penitenciários (Susepe) mostram que uma em cada cinco prisões está interditada no Rio Grande do Sul, seja parcial ou totalmente. Isto é, das 101 unidades prisionais em funcionamento, 23 operam com alguma ressalva da Justiça, como, por exemplo, impossibilidade de receber novos detentos.
As decisões das Varas de Execuções Criminais (VECs) são embasadas, de forma geral, em problemas como deficiência estrutural, número insuficiente de servidores, escassez de recursos para aquisição de produtos básicos de higiene e, principalmente, superlotação. Inflado, o sistema prisional gaúcho abriga 11 mil detentos acima da sua capacidade de engenharia, que é de 23.826 vagas. Além disso, há os 5.116 presos condenados que estão livres por inexistência de vagas.
E foi justamente o excesso de detentos que levou à interdição de 16 (15,84%) das 101 unidades, como aconteceu recentemente com o Presídio Regional de Bagé, parcialmente interditado no dia 10 por superlotação e falta de segurança. Com 329 detentos, 69 acima do limite, sustenta um ambiente propício a rebeliões, mortes e fugas, como explicam a professora do curso de Políticas Públicas da Universidade Federal do ABC (UFABC) Camila Nunes Dias e o doutor em ciência política pela Universidade de São Paulo Guaracy Mingardi, ambos associados ao Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Os especialistas alertam, ainda, para a parcela de contribuição do Judiciário no colapso do sistema prisional. Também falam como isso reflete na sociedade, que cruza com criminosos à solta nas ruas, além de apontarem motivos para o Rio Grande do Sul ter atingido o volume de 23 interdições diante do déficit de 11 mil vagas. Para a socióloga, esse conjunto de problemas sinaliza o descontrole do sistema.
— Se a Justiça interditou é porque percebeu que o Estado não tem condições de encarcerar. E essas interdições mostram que o modelo de encarceramento faliu, fracassou — analisa Camila, autora do livro PCC – Hegemonia nas Prisões e Monopólio da Violência.
Mingardi lembra do efeito cascata que as interdições provocam, obrigando a transferência de presos para outras unidades e as levando, por consequência, também à superlotação. Com isso, oferecem aos presos condições sub-humanas, que afastam a possibilidade de reinserção social.
— Se interdita, tem de transferir presos. Aí, superlota outros presídios, aumenta a probabilidade de rebelião, de fuga e de mortes. Além disso, os detentos abrigados em presídios inadequados são submetidos a uma sobre pena, ao viverem em local impróprio. Isso faz com que o detento saia de lá ainda pior, e o resultado é o aumento da criminalidade — diagnostica o cientista político.
Judiciário tem de fazer mea-culpa
Mingardi, que também é investigador criminal, sugere que a Justiça faça mea-culpa e chame para si parte da responsabilidade do caos penitenciário pelo qual passa não apenas o Rio Grande do Sul, mas todos os Estados brasileiros. O especialista em segurança pública critica o Judiciário ao dizer que os magistrados não têm acompanhado a degradação das casas prisionais ou agem tardiamente.
— É preciso culpar os dois lados. O Executivo por deixar chegar a um ponto insustentável, e a Justiça por não ter tomado providências antes. O Judiciário não pressiona no tempo adequado, quando o problema ainda tem solução, e, depois, se obriga a interditar. Essa é a realidade em todo o país — avalia.
Portanto, para Mingardi, não se pode colocar o problema unicamente na conta do Executivo, pois, na verdade, o problema “é de toda a sociedade”, já que há pessoas que deveriam estar presas agindo livremente nas ruas sem qualquer controle do Estado.
— O juiz tem de cobrar do Executivo um lugar adequado sempre e não apenas interditar quando não tem mais condições.
As interdições, alerta Camila, devem servir de sinal para que juízes e governo repensem políticas de segurança pública e passem a valorizar outros mecanismos de controle além do cárcere. Ela cita a intensificação das audiências de custódia, revisão da lei de drogas, adoção de mais tornozeleiras eletrônicas e de penas alternativas. Corroborando com Mingardi, Camila alega que as interdições transferem parte do problema para outros estabelecimentos prisionais, que passam a receber mais presos.
— Não há outra solução que não o processo de desencarceramento. A longo prazo, é necessário que os Estados passem a adotar medidas de prevenção, abandonando essa centralização no policiamento ostensivo sem investigação. Isso acaba lotando os presídios com pessoas que estão na ponta da dinâmica criminal. As políticas de segurança pública hoje são centradas em prender quem está mais vulnerável à atuação do policiamento. Isso lota os presídios e não resolve a criminalidade — diz.
“Cobranças são praticamente diárias”, diz juiz-corregedor sobre precariedade do sistema prisional
Alexandre Pacheco critica inércia da Secretaria da Segurança Pública em resolver questões envolvendo as carceragens
Em uma das pontas das interdições nas cadeias estão os juízes das Varas de Execuções Criminais (VECs), responsáveis por fiscalizar as prisões e exigir providências do Estado para que a ordem e o bom funcionamento sejam mantidos. E, para o juiz-corregedor Alexandre Pacheco, o Judiciário não tem faltado com as suas obrigações.
— As nossas cobranças são praticamente diárias para a Susepe (Superintendência dos Serviços Penitenciários) e para a Secretaria da Segurança Pública (SSP), mas nada é feito. Há uma deterioração constante dos presídios e, por consequência, vagas sendo perdidas — esclarece Pacheco, dizendo que a interdição só acontece quando todas as alternativas são esgotadas.
Dados da Susepe mostram que uma em cada cinco prisões está interditada no Rio Grande do Sul, seja parcial ou totalmente. Isto é, das 101 unidades prisionais em funcionamento, 23 operam com alguma ressalva da Justiça. Com isso, 5.116 presos condenados não estão recolhidos por inexistência de espaço físico, segundo levantamento da Corregedoria-Geral da Justiça. Destes, 2.878 usam tornozeleira eletrônica. Os demais nem sequer são monitorados.
Ao citar a falta de autonomia da Susepe por falta de recursos para deixar os presídios habitáveis, Pacheco comenta que muitos dos ofícios com pedido de providências enviados ao governo sequer são respondidos. Outro problema levantado pelo magistrado são prisões desordenadas feitas pela Brigada Militar, sem investigação prévia.
— Existe uma cultura de encarceramento em massa. A Brigada Militar faz um arrastão na boca de fumo e prende todo mundo. Tem de prender é o grande traficante — comenta.
O secretário da Segurança Pública, Cezar Schirmer, rebate dizendo que as ações principais da SSP são o policiamento ostensivo, as investigações, a perícia e o sistema prisional. Porém, soluções de médio e longo prazo exigem ações de prevenção, não só do Estado, mas também das prefeituras, da sociedade civil organizada, das famílias e da imprensa.
— Existem programas na segurança pública voltados à prevenção e à conscientização, principalmente no que diz respeito ao consumo de álcool e drogas — alega.
Uma alternativa para diminuir o número de encarceramento é a audiência de custódia, que consiste na garantia da rápida apresentação do preso a um juiz nos casos de prisões em flagrante. A ideia é que o suspeito seja apresentado e entrevistado pelo magistrado, em audiência em que serão ouvidas também as manifestações do Ministério Público, da Defensoria Pública ou do advogado do detido. Porém, a execução deste trabalho esbarra, conforme Pacheco, na falta de viaturas da Susepe para encaminhar os presos do interior até as comarcas.
No entendimento do juiz, a solução passa por construir presídios, mas, mais do que isso, por mudanças da concepção que aposta no encarceramento em massa. Para Pacheco, é preciso prender os traficantes e ocupar os pontos de tráfico de drogas com espaços públicos monitorados pela polícia.
— Diante da falta de recursos, o governo precisa elencar prioridades. Duas delas deveriam ser o sistema prisional e a política de segurança pública — conclui.
Schirmer responde que procura “tratar todas as questões formuladas pelo TJ (Tribunal de Justiça) e pelo MP (Ministério Público) com respeito” e que “as correspondências são respondidas sempre, mas muitas questões dependem de recursos financeiros e a solução é dada segundo esta realidade”.
— Minha primeira audiência externa no comando da SSP foi com juízes e promotores, visitando presídios. Desde o começo de minha gestão, tenho como prioridade a reestruturação do sistema penitenciário — afirma Schirmer.
16 casas superlotadas abrigam quase 15 mil presos
Das 23 unidades prisionais interditadas, 16 delas estão superlotadas. Somente nestas 16 casas com capacidade para 8.681 estão abrigados 14.809 dos 34.882 detentos do Estado. Este excesso de presos que é rechaçado por especialistas em segurança pública com a alegação de que as facções se alimentam do descontrole para se fortalecerem e arregimentarem integrantes por meio do acolhimento dentro da unidade. A tática é quase sempre a mesma: oferecer proteção em troca de favores futuros.
— A Lei de Execução Penal é violada por completo — avalia a professora do curso de Políticas Públicas da Universidade Federal do ABC (UFABC) Camila Nunes Dias, ironizando a situação da Cadeia Pública de Porto Alegre, conhecida como Presídio Central.
— A gente sabe que os problemas do Presídio Central de Porto Alegre vêm de muito tempo. Há mais de 10 anos é visto como um dos piores presídios do Brasil. E olha que a concorrência é forte — alfineta.
Com capacidade para 1.824, a maior cadeia do RS acolhe atualmente 4.555, 149% de superlotação.
— Ainda é preferível deixar um apenado na rua, solto, do que detido nessas condições, tamanho é o efeito nefasto que este tipo de encarceramento causa no cidadão — acrescenta o juiz-corregedor Alexandre Pacheco, que se mostra favorável à construção de presídios, desde que feito em conjunto com a remodelação de estratégia da Secretaria da Segurança Pública.
Já a socióloga Camila, autora do livro PCC – Hegemonia nas Prisões e Monopólio da Violência, discorda.
— Construir presídios não vai ser a solução, pois o Brasil faz isso há décadas. Se constrói presídios para que se tenha condições de prender mais e, assim, fortalecer as facções — diz.
Susepe garante que caos prisional “é uma herança” de governos passados
Diretor do Departamento de Segurança e Execução Penal da Susepe, Ângelo Larger Carneiro alega que o embaraço do sistema prisional é uma herança de pelo menos duas décadas, mas que vem sendo superado pelo governo do Estado com investimento e estratégia. Carneiro cita os centros de triagens e as casas prisionais de Canoas e Guaíba, que, segundo ele, estão prestes a entrar em operação. Ele rebate a afirmação do juiz-corregedor de que a Susepe não tem autonomia no governo.
— Estamos tendo voz dentro da Secretaria da Segurança Pública. E , mais do que isso, o secretário (Cezar Schirmer) entendeu que o sistema prisional é uma das prioridades — defende.
O diretor nega que os presos em prisão domiciliar especial ou monitorados por tornozeleiras eletrônicas estejam nessa situação por falta de vagas, mesmo sabendo que o déficit é de 11 mil vagas.
— Se isso está acontecendo, não é por solicitação da Susepe. Nosso dever é encontrar vagas e temos que dar um jeito — afirma, citando remanejamentos de presos como alternativa.
Sobre dificuldade em transportar detentos para audiência de custódia, garante que Susepe e Poder Judiciário estão tratando desse assunto para ampliar o serviço, mas que o projeto está “funcionando onde há capacidade operacional”. Afirmou ainda que as 720 vagas da Susepe prevista em concurso vão “garantir uma ajuda imensa”, mas que não pode garantir que o número irá suprir a necessidade.